Lula virou história
O governo mal acabou, mas uma simples consulta a livrarias virtuais indica, até o momento, aproximadamente 50 livros lançados com o nome "Lula" no título - fora os demais, sem a menção direta. O número é significativo se comparado, por exemplo, aos cerca de 15 disponíveis on-line, a partir da mesma ferramenta, com "Fernando Henrique Cardoso" ou "FHC". Enquanto o ex-presidente tucano é o principal autor de suas obras - nesse caso, há mais de duas dezenas delas sendo oferecidas -, Lula não assina livro algum, mas sua história tem potencial para inspirar uma bibliografia jornalística e acadêmica ainda maior, especialmente a partir de agora, nesta fase de balanços e análises (talvez) menos polarizadas.
Um dos biógrafos mais ativos do Brasil, Fernando Morais não tem dúvida: "Lulinha dá um livraço". Autor de clássicos como "Chatô, o Rei do Brasil" e "Olga", Morais gostaria de escrever um livro com o mesmo fôlego desses sobre o ex-presidente. E ele não é o único com planos editoriais a respeito de Lula. O jornalista Kennedy Alencar prepara um dos livros mais aguardados sobre os oito anos do governo, a ser lançado pela Publifolha, no qual vai contar mais sobre os bastidores da vida palaciana. A pesquisadora Denise Paraná, autora de "Lula, o Filho do Brasil" (editora Fundação Perseu Abramo) - base do filme homônimo de Fábio Barreto -, também reuniu material para um novo livro, desta vez sobre a simbologia em torno do líder político.
O sociólogo Francisco de Oliveira planeja publicar no ano que vem "A Formação do Avesso: Predação de Classe e Trabalhos de Sísifo", pela Boitempo. "Sempre começo pelo título", diz. Seu objetivo é revisar a história brasileira, mostrando como o "lulismo" se encontraria na culminância de uma nova estratégia de dominação, iniciada há meio século, que se daria pelo avesso, ou seja, com a participação das próprias classes dominadas.
O fenômeno do lulismo é controverso, até por causa de seu ineditismo, aspecto com o qual concordam Oliveira e um dos seus principais interlocutores - e opositores - nesse debate, seu colega André Singer, porta-voz da Presidência até 2007. Também em 2012, Singer vai lançar um livro sobre o lulismo, que se baseará na tese de livre-docência que defenderá neste ano na Universidade de São Paulo (USP). "Quando comecei a fazer essa análise, estabeleci um diálogo com as hipóteses do professor Francisco de Oliveira", afirma Singer. "Concordo com ele no sentido de que temos algo novo, mas não acho que seja às avessas, até porque a política que continua a ser executada contempla aspectos do programa original do Partido dos Trabalhadores [PT], como a inclusão social, apesar da incorporação de elementos que não estavam presentes inicialmente, de extração neoliberal."
Toda a polêmica, de acordo com Fernando Morais, só faz apimentar uma virtual biografia. "É uma figura que merece algo mais exaustivo, acho que alguém vai fazer. Lula é adorado pela população, mas tem uma oposição dura. O Lula demonizado dá um sabor especial ao livro. Além disso, ele não é casmurro, o que ajuda o biógrafo. Este é um trabalho no qual eu tenho muito interesse e convivi bastante com o Lula."
No momento, entretanto, Morais prefere deixar o projeto amadurecer: "Pedi, por meio de amigos comuns, para gravar com Lula uma meia dúzia de depoimentos longos, sobre passagens importantes do governo, mas ele disse para desistir, porque ou sairia abobrinha ou perderia amigos. A poeira na alma dele ainda não baixou. Um dia, se topar, torço para que chute a bola para o meu lado."
Já o coordenador editorial da editora Fundação Perseu Abramo, Rogério Chaves, está mais otimista quanto à possibilidade de obter depoimentos do ex-presidente. A fundação tem entre seus propósitos contar a história do PT, e a ideia é preparar uma continuação do livro "Lula, o Filho do Brasil", que tem apresentação de Antonio Candido e se concentra no período de formação do filho de dona Lindu. A editora negocia a contratação de um novo autor. "Queremos amadurecer a ideia com o próprio Lula", conta Chaves. "A ideia é discutir menos o Lula como mito e sim como agente de um momento de grande mudança. Será necessário ter nessa edição a participação de uma pessoa com leitura política, que vá pegar também a fase do governo. Pensamos em aproveitar este ano, quando as informações estão mais recentes."
Além disso, a editora da fundação iniciou, no ano passado, a publicação de coleções técnicas sobre os dois mandatos. Uma delas é "2003-2010: o Brasil em Transformação", na qual serão lançados mais quatro volumes neste ano - sobre políticas sociais, direitos humanos, estatais e saúde.
A dificuldade de escrever sobre a trajetória do ex-presidente, segundo Denise Paraná, deve-se ao fato de Lula raramente dar depoimentos. "Até hoje, ele só deu depoimentos longos sobre a sua vida para a pesquisa que eu realizei. Foram muitos meses de entrevista, horas de conversa, no início dos anos 1990." Ao longo desses anos, Denise travou amizade com a família de Lula e frequenta casamentos e festas de Natal dos irmãos e dos sobrinhos dele. Já coletou amplo material sobre a construção simbólica do personagem, no Brasil e no exterior.
"Não me interessam tanto o lado político partidário, as disputas ou o balanço do governo. Quero escrever sobre a visão de mundo dele, destacando os aspectos subjetivos, ideológicos, culturais. Há muitos anos, eu tenho conversado com a família toda, observado como enfrentam as situações etc. Em "Lula, o Filho do Brasil", eu já trabalhava por meio dessa corrente da psico-história", diz.
No novo livro, vai analisar como Lula estaria contribuindo para o país se livrar do chamado "complexo de vira-lata", termo cunhado por Nelson Rodrigues quando observava a seleção nacional jogando futebol com potências estrangeiras. Segundo Denise, o brasileiro está entre os cinco povos mais otimistas do mundo quanto à mobilidade social, e Lula seria um símbolo importante desse ânimo.
"Existem pessoas que conseguem ascender socialmente. Em geral, saem da classe social baixa e se adaptam à nova classe. Deixam um lugar para ocupar outro. Mas com o Lula foi diferente: ele ocupa os dois lugares. Ele tem orgulho de ser o incluído e ao mesmo tempo o orgulho de ser o superexcluído. Isso dá um nó na cabeça da elite. Lula constrói espaço novo, a partir da comunicação direta com a população. Do ponto de vista simbólico, ele quebra paradigmas e modelos o tempo todo."
Em suas pesquisas no exterior, Denise chegou a se impressionar com a força do personagem, que chegaria a substituir Pelé como principal referência a respeito do país. "Muita gente que antes nem sabia onde fica o Brasil agora fala do país através da figura do Lula. É como se ele tivesse posto o Brasil no mapa-múndi."
Mas Denise reconhece que se trata de figura controversa: "Há quem diga que ele pratica populismo de direita, enquanto outras pessoas afirmam que é completamente revolucionário. Eu ouvi isso na França. Mas não estou dizendo que tudo deu certo no governo. O fato é que há muita coisa para estudar a respeito desses últimos oito anos: foram infinitas e profundas as transformações."
Boa parte do que diz poderia servir de subsídio a uma explicação do "lulismo". De acordo com André Singer, a base do fenômeno, que se configurou claramente a partir da reeleição de 2006, se encontra nos estratos de mais baixa renda da população - sendo o Bolsa Família um ingrediente não desprezível nesse conjunto. "É uma camada da população com perspectiva de mudança de renda, mas pode ser considerada conservadora por querer essas mudanças sem ameaça à ordem estabelecida. O lulismo tem elementos carismáticos, sobretudo no Nordeste, mas é um movimento real da sociedade, democrático. Embora não formalizado, tem fôlego para durar muitos anos", afirma.
Para Oliveira, sem entender o lulismo dificilmente se entende o Brasil de hoje: "Mesmo porque o lulismo nos devora". Em sua opinião, Lula é um ilusionista: "Ele tira coelho da cartola o tempo todo. Não é o escravismo ou o patrimonialismo que explicam o atraso atual. Não se trata de uma herança de 500 anos. No livro, vou fazer a revisão da história para mostrar como essa formação do avesso se refere aos últimos 50 anos, a uma escolha das camadas dominantes. Houve uma opção pelo atraso. Cria-se a pobreza, que não é brasileira, como forma de controle e dominação. Lula tira benefício disso. Seu governo foi a culminância desse processo. Não houve avanço institucional nestes oito anos. Assim como as classes dominantes, Lula dança sobre a miséria para construir a sua popularidade."
O Brasil vive uma "falsa euforia", diz Oliveira. "Sobraram para o país os produtos baratos. É a euforia de quem chegou atrasado ao baile, a celebração da derrota da vitória. Todos estão contentes, mas sobre cultura e cidadania não temos nada. Chegou-se aos bens de consumo, mas não à civilidade", comenta. "Estamos vivendo um fascismo do consumo. As pessoas se detestam, desapareceu qualquer traço de solidariedade pessoal e social. Os valores que a sociedade deveria cultivar, ela não cultiva. Há uma tensão fascista no ar. Sempre que um materialista começa a relacionar feitos sociais, pode desconfiar que atrás existe um cheiro de fascismo." O sociólogo, que é ex-petista, reitera: "Fizeram do Lula a imagem idealizada do anjo operário, o que ele não é. Faz muitas décadas que ele deixou de ser operário. A tragédia brasileira é imensa."
Como observa Morais, "herói de bronze só tem em praça pública" e a figura de Lula, como se vê, está longe do consenso. Por enquanto, na imprensa e em seminários, o momento é dos primeiros balanços. Especula-se qual seria sua participação na gestão da sucessora, Dilma Rousseff, e se voltaria a se candidatar à Presidência, embora Denise Paraná, até o momento a maior especialista na biografia lulista, aposte que não há volta: "Lula nunca andou para trás. Quando saiu da presidência do sindicato, disseram o mesmo, que ele voltaria, mas não foi o caso. Sempre foi assim na trajetória dele. O Brasil agora já fica pequeno para Lula, que tem a possibilidade de fazer muita coisa pelo mundo. Duvido que se candidate novamente, até porque entrou para a história como o presidente mais popular do país".
Kennedy Alencar, que cobriu os dois mandatos pela "Folha de S. Paulo", em Brasília, fez questão de esperar que Lula deixasse o Planalto para terminar seu livro sobre o governo só agora. "Achei melhor assim, para ter uma perspectiva mais ampla", afirma Alencar, que começou a redigi-lo de maneira mais intensa no ano passado. Já publicou algo do que saiu na própria "Folha", em dezembro. "Desde a eleição do Lula em 2002, pensava em escrever algo, com material apurado que eu não tinha como usar no dia a dia. Reuni muitos bloquinhos de anotação ao longo dos anos. Eu sempre escrevia um pouco e guardava."
Sua intenção é identificar os piores e melhores momentos, contar sobre a sucessão de escândalos enfrentados, como o caso Waldomiro Diniz e o mensalão, falar da crise econômica, das políticas sociais etc. "Vou detalhar um pouco mais. Ainda vou ter algumas conversas. A gente nunca para de apurar. Estou com todo o material arquivado, mas quero tempo para fazer com mais calma." Haveria ainda alguma revelação importante? "Eu acho que sim, porque jornalista nunca consegue mostrar tudo. A relação entre imprensa e governo é naturalmente tensa, sempre vai ter algo para descobrir." Além disso, o próprio Lula gostaria de voltar ao assunto do mensalão este ano, como lembra o jornalista: "É muita história para contar".
(Valor Econômico)
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