sábado, 29 de janeiro de 2011

DA CARTA CAPITAL

Belas Artes: um patrimônio que São Paulo não pode deixar fechar



A notícia que o Cine Belas Artes iria fechar gerou uma comoção em um segmento importante da sociedade paulistana. A mobilização que nasceu a partir daí não deixa nenhuma dúvida: este cinema é um patrimônio da cidade. Seu desaparecimento vai significar para muitos de nós um enorme sentimento de perda, como a morte de um familiar ou amigo. Mais que isto, criará uma lacuna que uma cidade como São Paulo, tão desprovida de memória e de lugares significativos, não pode deixar acontecer.



Quase dez mil paulistanos já assinaram um abaixo-assinado se posicionando contra este crime. Fazem isto porque se sentem ligados ao local que, após meio século de vida, se tornou uma referência cultural e urbana para a cidade. A questão não é preservar a arquitetura do edifício, mas o uso do lugar, sua importância como ponto de encontro e espaço de debate cultural. A noção contemporânea de patrimônio é clara: a comunidade, além dos especialistas, tem um papel fundamental na identificação dos bens culturais a serem protegidos.

A noção de patrimônio se ampliou muito desde que o Estado Novo, através do Decreto-Lei 25/1937 criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e intituiu o tombamento. Embora Mário de Andrade tivesse proposto uma abrangência maior, na época, prevaleceu uma visão restrita, voltada para os bens com valor arquitetônico e artístico, chamada de “patrimônio de pedra e cal”.

Os critérios utilizados para a seleção dos bens a serem protegidos eram os de caráter estético-estilísticos, excepcionalidade e autenticidade, valorizando a arquitetura tradicional luso-brasileira, geralmente edifícios isolados, produzida no período colonial. O foco era a criação de uma identidade nacional, base cultural para a criação e fortalecimento de um Estado nacional.

Na década de 1970, esta noção de patrimônio se alargou enormemente, acompanhando as tendências internacionais. Nesta nova perspectiva, ligada à concepção de “Cidade Documento”, passou a abranger também sítios urbanos e manifestações de outros períodos e origens culturais, assim como se valorizou os espaços onde ocorre a vida social e os hábitos cotidianos da população. Em certas situações, os locais de vivência e de práticas sociais, que têm valor pelo seu uso, podem ser até mais relevantes do que os monumentos isolados de valor arquitetônico.

Além de valorizar o contexto urbano e edifícios utilizados pela população, entendidos como uma construção histórica, esta nova visão reserva à comunidade um papel ativo na identificação do patrimônio, que deixa de ser uma atribuição restrita aos profissionais envolvidos com a preservação. É por isto que o atual Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE) e sua Lei de Zoneamento, que incorporaram como conceito e método participativo esta nova visão de patrimônio, incluiu nas áreas a serem preservadas como Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPEC), locais indicados pela população como de interesse urbano e, por não dizer, afetivo.

Por esta razão, o tombamento do Cine Belas Artes está amplamente respaldado no Plano Diretor Estratégico de São Paulo, projeto que tive a oportunidade de relatar e redigir o substitutivo na Câmara Municipal (Lei 13540/2002). No capítulo que trata da Política de Patrimônio Histórico e Cultural, o PDE estabelece que uma das ações do município deve ser “incentivar a participação e a gestão da comunidade na pesquisa, identificação, preservação e promoção do patrimônio histórico, cultural, ambiental e arqueológico” (artigo 90, inciso VII), enquanto que uma das seus diretrizes é “a preservação da identidade dos bairros, valorizando as características de sua história, sociedade e cultura” (artigo 89, inciso III).

Em 2003, quando o Belas Artes e o antigo Cine Arte (atual Cultura) estavam ameaçados de fechar, a sociedade se mobilizou e impediu este desfecho doloroso. Na oportunidade, para apoiar os poucos cinemas de rua que ainda restavam na cidade, propus e foi aprovada uma lei que permite aos cinemas, como o Belas Artes, pagarem seus impostos municipais com ingressos em horários de baixa frequência, a serem utilizados em programas de inclusão cultural, para jovens e estudantes de escolas públicas. Na oportunidade, depois de passado o sufoco, erramos ao não nos darmos conta de que era necessário criar uma proteção legal mais permanente para estes cinemas.

A atual mobilização mostra que, de modo coerente com o PDE, uma parcela relevante da comunidade paulistana identificou um bem que faz parte da identidade de um bairro, característico da história e cultura de toda a cidade, e que está ameaçado de desaparecer e luta para garantir sua preservação. Não temos tempo a perder, porque o despejo do Belas Artes está marcado para o dia 27 de janeiro e em seguida ele será destruído.

O processo de tombamento já foi solicitado pela Associação Paulista de Cineastas. Agora é necessário que o Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura elabore um bom parecer técnico, e este artigo modestamente visa contribuir para ele, e a presidência do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de São Paulo – Compresp deve convocar uma reunião extraordinária para decidir pela preservação, antes da data fatal. Não vamos deixar que mais esta catástrofe ocorra em São Paulo no mês do seu aniversário.

PS: O Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) decidiu colocar em votação no dia 18 o tombamento do prédio na Rua da Consolação.

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