As bem-aventuranças não alcançadas
Ricardo Gondim
Meu pai faleceu no dia seis de dezembro de 2005. Em sua morte, lembrei-me que ele não tergiversou no golpe militar de 1964. Preso, sofreu tortura na cadeia e, mesmo depois de julgado e inocentado, foi expulso das Forças Armadas. Implacavelmente patrulhado pelo regime, meu pai foi um exemplo de firmeza. Em seu funeral, agradeci a Deus por seu maior legado em minha vida: dignidade. Percebo que não alcancei algumas virtudes; não me encaixo na bem-aventurança de Mateus 5.10: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o Reino dos Céus”. Não posso me incluir nessa promessa porque nunca fiz vigília solitária nas calçadas dos hospitais públicos que desprezam o direito do pobre, nunca marchei pelos idosos ou me arrisquei por crianças abandonadas; não me amarrei a uma árvore para não permitir que ela fosse cortada pela gula da especulação imobiliária; não fiz greve de fome por nenhuma causa…
Não posso reivindicar ser incluído neste versículo do Sermão da Montanha se, para mim, o tráfico internacional de prostitutas não passa de apenas uma notícia bizarra. Ainda não articulei nenhuma passeata contra o avanço da pedofilia. Como posso me considerar bem-aventurado se analiso o Movimento dos Sem Terra com lentes ideológicas, e não percebo naqueles marchantes maltrapilhos seres humanos carentes de dignidade?More…
Depois que enterrei meu pai, meditei na minha vocação e agora atino sobre os porquês de nunca terem me algemado ou perseguido.Fui institucionalizado. O sistema me engoliu. Por toda minha vida, aceitei passivamente que as bandeiras ideológicas fossem arriadas pelo poder do capital. Ingenuamente não escutei quando um pastor chinês me advertiu, há mais de vinte anos, de que nenhuma ideologia, partido político ou sistema religioso consegue resistir ao poder do capital. Assim, de braços cruzados, deixei minha geração capitular diante do consumismo materialista. De uma arquibancada, vi muitas igrejas se transformarem em balcões de serviços religiosos e muitos pastores virarem mercadejadores da Palavra. Jesus prometeu recompensa aos perseguidos por causa da justiça. Mas não posso esperar tal galardão. Minha vocação profética foi simbólica, com pouca densidade. Sempre achei mais fácil criticar do que me envolver. Esqueço que o movimento desencadeado por Rosa Parks contra as leis racistas do sul dos Estados Unidos só progrediu porque Martin Luther King marchou pelas ruas do Alabama. O aparthaid da África do Sul só foi desmantelado porque o bispo anglicano Desmond Tutu transformou seus sermões em ação política e o metodista Nelson Mandela passou 30 anos na cadeia.
Confesso. Ainda não me vejo digno da felicidade de receber o mesmo galardão dos profetas. Enquanto eles defenderam os órfãos e as viúvas, eu me contentei em pregar uma mensagem desencarnada. Por anos, falei do Céu para fugir das injustiças que me rodeavam; prometi salvação como forma de mitigar o sofrimento dos pobres. Não atinei para a advertência de Tiago (1.27): “A religião que Deus, nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo”.
Não posso reivindicar ser incluído neste versículo do Sermão da Montanha se, para mim, o tráfico internacional de prostitutas não passa de apenas uma notícia bizarra. Ainda não articulei nenhuma passeata contra o avanço da pedofilia. Como posso me considerar bem-aventurado se analiso o Movimento dos Sem Terra com lentes ideológicas, e não percebo naqueles marchantes maltrapilhos seres humanos carentes de dignidade?More…
Depois que enterrei meu pai, meditei na minha vocação e agora atino sobre os porquês de nunca terem me algemado ou perseguido.Fui institucionalizado. O sistema me engoliu. Por toda minha vida, aceitei passivamente que as bandeiras ideológicas fossem arriadas pelo poder do capital. Ingenuamente não escutei quando um pastor chinês me advertiu, há mais de vinte anos, de que nenhuma ideologia, partido político ou sistema religioso consegue resistir ao poder do capital. Assim, de braços cruzados, deixei minha geração capitular diante do consumismo materialista. De uma arquibancada, vi muitas igrejas se transformarem em balcões de serviços religiosos e muitos pastores virarem mercadejadores da Palavra. Jesus prometeu recompensa aos perseguidos por causa da justiça. Mas não posso esperar tal galardão. Minha vocação profética foi simbólica, com pouca densidade. Sempre achei mais fácil criticar do que me envolver. Esqueço que o movimento desencadeado por Rosa Parks contra as leis racistas do sul dos Estados Unidos só progrediu porque Martin Luther King marchou pelas ruas do Alabama. O aparthaid da África do Sul só foi desmantelado porque o bispo anglicano Desmond Tutu transformou seus sermões em ação política e o metodista Nelson Mandela passou 30 anos na cadeia.
Confesso. Ainda não me vejo digno da felicidade de receber o mesmo galardão dos profetas. Enquanto eles defenderam os órfãos e as viúvas, eu me contentei em pregar uma mensagem desencarnada. Por anos, falei do Céu para fugir das injustiças que me rodeavam; prometi salvação como forma de mitigar o sofrimento dos pobres. Não atinei para a advertência de Tiago (1.27): “A religião que Deus, nosso Pai, aceita como pura e imaculada é esta: cuidar dos órfãos e das viúvas em suas dificuldades e não se deixar corromper pelo mundo”.
Frei Betto também foi preso na ditadura. Na clausura, ele notou que seus algozes procuravam humilhá-lo. Usavam artifícios legais para mudar sua condição de preso político para um criminoso. Assim, ele fez uma greve de fome como forma de resistência. Depois de vários dias sem alimentação, debilitado e perigosamente próximo da morte, seus familiares tentaram dissuadi-lo: “Betto, pare! Nossa maior dádiva é a vida”, aconselharam. “Não jogue ela fora por um detalhe jurídico”, insistiram. Resoluto, ele respondeu: “Não. A maior dádiva que recebi de Deus não foi a vida, e sim minha dignidade”. Sei que preciso aprender muito antes de fazer minha última travessia; espero ser incluído na bem-aventurança dos justos, repetindo o que disse Paulo (Atos 20.24): “Não me importo, nem considero minha vida de valor algum para mim mesmo, se tão somente puder terminar a corrida e completar o ministério que o Senhor Jesus me confiou”.
Soli Deo Gloria
Li em voz alta o texto, tomando um café, depois do almoço (e antes de voltar pro trabalho). Te digo: concordo com tudo, adorei tudo, porém ali no final trocaria a frase do Frei Betto "Não. A maior dádiva que recebi de Deus não foi a vida, e sim meu ORGULHO".
ResponderExcluirPerigoso matagal esse.....
Um café pra ti tb!