Hipocrisia de países influentes ameaça justiça internacional, diz Anistia
Os limitados avanços alcançados na defesa dos direitos humanos nos últimos anos desaparecerão caso permaneça a política de "dois pesos e duas medidas" dos países mais influentes quanto à justiça internacional. É o que defende a brasileira Márcia Poole, diretora-geral da Anistia Internacional.
Neste sentido, a ONG, que amanhã lança seu relatório referente ao ano de 2009, pede que os países integrantes do G20 "deem o exemplo". Hoje, 12 deles não são signatários do Estatuto de Roma (1998), que rege o TPI --entre eles os EUA, a China, a Rússia, a Turquia e a Índia--; e mais da metade adotam medidas de restrição à liberdade de expressão.
"Se por um lado foi sem precedentes que, pela primeira vez, um chefe de Estado em exercício, o presidente sudanês, Omar al Bashir, tenha sido indiciado pelo Tribunal Penal Internacional [TPI], por outro lado, a União Africana não quer cooperar e fazer valer o mandado de prisão. Se a gente não abordar a questão da hipocrisia dos países mais influentes, os ganhos que ocorreram no ano passado correm o risco de voltar pra trás", afirma.
Ahmed Jadallah/Reuters |
O sudanês Omar al Bashir, que foge de prisão por crimes de guerra em Darfur |
Outro integrante da AI, Drewery Dyke, pesquisador no Irã, concorda. "Governos poderosos minam o progresso da justiça global ao ficarem acima da lei e evitarem responsabilidades por seus próprios atos. É uma questão preocupante."
No que diz respeito ao Brasil, Poole cobra protagonismo. Ela avalia que o país vive um momento "único" e que deveria mostrar maior liderança em fóruns internacionais. "O país no momento é membro do G20, do Bric, como membro rotativo do Conselho de Segurança [da ONU], do Conselho de Direitos Humanos. Mas, nesses fóruns, a gente ainda não vê uma liderança do Brasil condizente com o status de potência emergente justo em um momento em que a voz do Brasil está sendo ouvida."
"É uma oportunidade para o Brasil usar sua voz. O Brasil tem bons contatos com China, Irã. Poderia usar sua influência bilateral no assunto. O próprio ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, falou que o Brasil não pretende necessariamente engajar os países de forma bilateral, e é o contrário. O Brasil hoje tem peso, precisa usar seus laços para avançar em outras áreas."
"O Brasil, no esforço de aumentar a aliança sul-sul, ameaça o posicionamento mais forte no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, onde o país vota de uma forma muito fraca em questões sobre o Sri Lanka, a Coreia do Norte, o Sudão. É muito importante abrir diálogo com esses países, mas isso não pode ser feito a custo dos direitos humanos", diz o britânico Tim Cahill, pesquisador da AI no Brasil.
"Manter só um diálogo a portas fechadas [como o Brasil diz fazer com o iraniano Mahmoud Ahmadinejad e o ex-ditador cubano Fidel Castro] é muito suscetível a outros entendimentos e não exerce a pressão necessária. Se o Brasil acha que todo o sistema das Nações Unidas é excessivamente politizado, deve criar reformas que reforcem o seu papel em direitos humanos nos órgãos internacionais. Desqualificar apenas não contribui para reforçar o único espaço que existe para um debate e uma prestação de contas internacional", defende.
Continentes
O relatório da AI documenta abusos ocorridos em 159 países de janeiro a dezembro de 2009. As pesquisas da ONG registram a ocorrência de tortura ou maus-tratos em pelo menos 111 países; julgamentos injustos em pelo menos 55 países; e de restrições à liberdade de expressão em pelo menos 96 países. Os chamados presos de consciência --termo usado pela organização para designar detidos por causa de raça, religião, orientação sexual ou crença-- permanecem encarcerados em ao menos 48 países.
No Oriente Médio e no Norte da África, padrões recorrentes de intolerância governamental às críticas foram observados na Arábia Saudita, na Síria e na Tunísia, enquanto que no Irã a repressão foi intensificada ainda mais. Na Ásia, o governo chinês aumentou a pressão contra quem desafiava sua autoridade, detendo e hostilizando defensores dos direitos humanos. Enquanto isso, na Coreia do Norte e em Mianmar, milhares de pessoas tentavam escapar da repressão brutal e das dificuldades econômicas.
Em algumas partes da Europa e da Ásia Central, reduziu-se o espaço para as vozes independentes e para a sociedade civil, e houve restrições injustas da liberdade de expressão na Rússia, na Turquia, no Turcomenistão, no Azerbaijão, em Belarus e no Uzbequistão. A América Latina foi afligida por centenas de mortes ilegais cometidas pelas forças de segurança, inclusive no Brasil, na Jamaica, na Colômbia e no México, enquanto que nos Estados Unidos as violações relacionadas com o combate ao terrorismo permaneciam impunes.
Na África, governos como o da Guiné ou o de Madagáscar reagiram às divergências com o uso de força de excessiva e com a prática de homicídios ilegais. Na Etiópia e em Uganda, assim como em outros países, as críticas foram respondidas com repressão.
Conflitos
Os conflitos armados foram marcados por desprezo aos civis, diz a AI. Grupos paramilitares e forças dos governos violaram o direito internacional na República Democrática do Congo, no Sri Lanka e no Iêmen. Nos choques ocorridos em Gaza e no sul de Israel, forças israelenses e grupos armados palestinos mataram e feriram civis de modo ilegal. No Afeganistão e no Paquistão, em meio à escalada da violência, milhares de civis sofreram abusos nas mãos dos talebans.
No Iraque e da Somália, são os civis que pagam o maior preço. Na maioria desses conflitos, as mulheres e as meninas foram estupradas e sofreram outros tipos de violência por parte das forças governamentais e dos grupos armados.
Avanços
Apesar das falhas graves que frustraram a justiça no ano passado, houve progressos em diversas circunstâncias. Na América Latina, foram reabertas investigações sobre crimes que haviam sido encobertos por leis de anistia e ocorreram júris históricos envolvendo ex-dirigentes políticos, como os que condenaram o ex-presidente Alberto Fujimori, do Peru, por crimes contra a humanidade, e o último presidente militar da Argentina, Reynaldo Bignone, por sequestro e por tortura.
Foram concluídos todos os julgamentos do Tribunal Especial para Serra Leoa, com exceção daquele do ex-presidente da Libéria, Charles Taylor, que ainda estava em andamento.
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