terça-feira, 1 de dezembro de 2009

RETALHOS: RESENHA DA HQ


RETALHOS Título: RETALHOS (Quadrinhos na Cia.) - Edição especial

Autor: Craig Thompson (roteiro e arte) e Érico Assis (tradução) - HQ originalmente publicada em Blankets

Preço: R$ 39,90

Número de páginas: 592

Data de lançamento: Maio de 2009

Sinopse: A obra retrata fragmentos da juventude do autor e sua relação problemática com a família, com Deus e com seu primeiro interesse amoroso.

Positivo/Negativo: Em certas regiões do interior dos Estados Unidos, o cristianismo é tão presente e rígido que a mentalidade de sua população em nada lembra as liberalidades de uma Nova York ou de uma São Francisco.

Nesses recantos castigados pelo clima volúvel, que ora congela, ora escalda, grassa um provincianismo recheado de preconceitos contra gays, não-cristãos, intelectuais, esquerdistas e todos que não compactuem dos dogmas repetidos nos rituais carismáticos que o jovem Craig Thompson presencia sem penetrar no sentido íntimo dos gritos e na cantoria em grupo.

O protagonista da trama, o próprio autor, mostra o peso que a criação rígida e a constante pressão da comunidade religiosa exerceram sobre sua infância. Perseguido e espancado regularmente na escola por ser frágil e bonzinho demais, Craig refugiava-se no desejo sincero de fazer o que Deus queria dele.

Em casa, dividia a cama com seu irmão mais novo, com o qual brincava antes de dormir. Craig devia protegê-lo, mas não protestou quando o pai levou seu irmão para passar a noite num cômodo escuro e úmido, na companhia de aranhas e baratas. Tampouco o alertou para o abuso sexual que estava prestes a sofrer nas mãos de um adolescente contratado para tomar conta deles.

O pai de Craig era severo e a mãe, ríspida. A educação que deles o autor recebeu não o preparou para o mundo, mas apenas para os ambientes religiosos asfixiantes que era obrigado a frequentar. Somente quando brincava com o irmão ou desenhava ele se sentia feliz.

Craig se viu impelido a desistir do que mais gostava - desenhar - quando foi informado de que isso apenas tomava-lhe um tempo que podia usar orando e cantando os hinos de sua igreja. O pastor de sua congregação queria que ele fizesse seminário.

As aulas de evangelização para crianças, nas quais Craig aprendeu sobre o céu e o inferno, marcariam a sua vida para sempre. Em Retalhos, elas são retomadas em vários pontos da trama para ressaltar a recusa do mundo que o ajudou a superar as dores da infância e o misto de culpa e medo que o levou a afastar-se de qualquer pensamento considerado "sujo", com receio de que o "pecado" o condenasse ao inferno.

O jovem protagonista transita entre mundos em que não se encaixa: ao mesmo tempo em que tenta se adequar aos mandamentos e ao temor sobrenatural que seus pais e sua igreja lhe incutem, ele se esforça para não se diferenciar demais dos outros jovens de sua escola e de sua congregação - muitos dos quais são bem menos apegados às restrições religiosas do que ao êxtase dos cânticos coletivos.

Assim, Craig tenta não se afastar muito do mundo em que seu irmão vive e precisa aproximar-se do mundo de sua querida Raina, mas sem deixar afogar-se nele.

Raina e Craig se conhecem durante um retiro para jovens cristãos. Ela se mostra aparentemente deslocada e mais afeita a um contato íntimo com o divino do que a multidões orando em uníssono. A conexão entre os dois é imediata.

Em poucos meses, Craig viaja para a cidade de Raina para passar duas semanas na casa dela. Em alguns dias, eles começam um relacionamento cada vez mais profundo, que o obriga a rever algumas de suas convicções.

Assim que ele chega, Raina lhe dá de presente uma colcha de retalhos que preparou com pedaços de tecido que marcavam fases distintas de sua vida e acaba se tornando a metáfora-título da obra. Uma colcha das lembranças da juventude de Craig ofertada ao leitor como um presente e, ao mesmo tempo, como um saco de demônios dos quais o autor quer libertar-se.

Portanto, a obra é, ao mesmo tempo, uma oferta íntima a cada fã e um exorcismo simbólico de Craig Thompson.

A crise espiritual que vem com a descoberta do amor nos braços (e no quarto) de Raina faz com que Craig tenha de se reinventar, e esse processo só será concluído quando seus estudos bíblicos o levarem a perceber as contradições inconciliáveis e demasiado humanas do Livro Sagrado, fazendo com que todos os ensinamentos do pastor e dos seus pais caíssem por terra.

Quando Craig enfim deixa a casa dos pais, aos 20 anos, para tentar a carreira de desenhista, todo um novo mundo se abre para ele, com valores diferentes e uma nova razão para viver.

Retalhos é uma das mais importantes histórias em quadrinhos publicadas nos últimos anos. A obra autobiográfica de Craig Thompson prende o leitor ao longo de suas quase 600 páginas e é um convite sincero a conhecer suas lembranças tumultuosas.

Com este livro, Thompson deixa claramente "uma marca na superfície branca", o rastro de seus passos, "mesmo que seja temporário".

Em diversos momentos, há semelhanças com as metáforas visuais de David B. (Epilético), David Mazzucchelli (Cidade de Vidro) e Art Spiegelman (Maus). A cadência, o estilo e certas cenas remetem ao mestre Will Eisner. Nos traços variantes, na sinuosidade das curvas ou nas angulações desconcertantes, o Craig autor reconstrói graficamente o estado de espírito do Craig protagonista a cada passo da trama.

Seja para retratar o arrebatamento pela visão do corpo seminu da amada, seja o desespero de estar sozinho no mundo, seja a cama virando um navio pirata lançado a um mar revolto nas brincadeiras com seu irmão... tudo é traduzido visualmente.

Um lançamento desse porte nas livrarias brasileiras só vem reforçar a sensação de que 2009 é o ano da Quadrinhos na Cia. Não bastasse Retalhos, o novo selo da Companhia das Letras trouxe ao Brasil Umbigo sem Fundo, Jimmy Corrigan e Breakdowns. Se conseguir manter o esmero com que compôs a versão brasileira do livro de Craig Thompson, os leitores ficarão eternamente gratos.

A encadernação é resistente, apesar do grande número de páginas. A tradução consegue captar cada nuance. A capa é belíssima. O título em português não podia ser melhor. O preço é convidativo. Não há senões.

Vencedora de diversos prêmios mundo afora, Retalhos é de uma beleza assombrosamente melancólica e pura, que enternece a ponto de levar às lágrimas - contidas, disfarçadas, mas profundas. Quem não ama quadrinhos, definitivamente passará a amar.

Classificação: - Diego Calazans

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