terça-feira, 20 de abril de 2010

O MUNDO DE CABEÇA PRA BAIXO

"Não haverá vencedores numa confrontação com Irã", diz chanceler turco


CLAUDIA ANTUNES
enviada especial a Brasília

A Turquia está "assumindo riscos" ao tentar fazer a mediação entre o Ocidente e o Irã, mas acredita ter essa responsabilidade devido aos laços históricos com os vizinhos iranianos e à necessidade de garantir a estabilidade na região, disse o ministro das Relações Exteriores turco, Ahmet Davutoglu. "Não haverá vencedores numa confrontação", afirmou.

Davutoglu falou à Folha depois de se reunir com o chanceler Celso Amorim em Brasília, na última sexta. Ele confirmou que a Turquia está disposta a atuar como depositária do estoque de urânio iraniano, se houver acordo entre o país e o P5+1 (as potências do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha). Além do programa nuclear iraniano, discutiu as questões curda e armênia e a atuação crescente de seu país num entorno que vai da Ásia Central aos Bálcãs.

As exportações turcas para o Irã aumentaram mais de seis vezes desde 2002, e os turcos são consumidores do gás iraniano. A Turquia responde hoje por 50% das economias combinadas do Oriente Médio e do norte da África, mesma proporção do Brasil em relação à América do Sul. Membro da Otan, a aliança militar ocidental, e candidato ao ingresso na União Europeia, o país por vezes é criticado por seu hiperativismo diplomático.

Cientista político e autor de livros sobre geoestratégia, Davutoglu assumiu o comando da diplomacia turca em maio de 2009. Desde 2003, assessorou sucessivos governos do AKP (Partido Justiça e Desenvolvimento), de centro-direita e islâmico moderado.

Abaixo, a íntegra da entrevista:
 
FOLHA - O senhor se dá conta das coincidências entre Brasil e Turquia, no que diz respeito às respectivas posições em suas regiões e mesmo às críticas que as duas diplomacias recebem por "hiperativismo"?
 
AHMET DAVUTOGLU - Do ponto de vista das orientações de política externa, há muitas similaridades. Os dois países são potências regionais. O Brasil é líder de processos regionais na América Latina, e a Turquia tem esse papel no Oriente Médio, nos Bálcãs e na Ásia Central. Se os dois tiverem cooperação estratégica, podem se complementar. Mais importante, quando se olha para a performance dos dois países nos últimos anos, eles são muito ativos também em temas globais, no G20, no Conselho de Segurança da ONU, e também em temas culturais como a Aliança de Civilizações [iniciativa turco-espanhola abraçada pela ONU]. Temos a responsabilidade de não ser apenas espectadores passivos dos acontecimentos, mas de liderá-los.
 
FOLHA - O senhor às vezes é criticado por parecer fazer muito, com poucos resultados. Como responde a essa crítica?
 
DAVUTOGLU - Há muitos resultados tangíveis da política externa turca, e posso dar alguns exemplos. A Turquia foi o único país que conseguiu levar Síria e Israel a conversações indiretas nos últimos dez anos. Também ajudou na reconciliação política no Iraque em 2005, aproximando as diferentes facções. Além disso, contribuiu para obter do Hamas uma garantia de cessar-fogo na guerra de Gaza [dezembro 2008-janeiro 2009]. Junto com o Qatar, ajudamos a resolver a crise política que impedia a eleição de um presidente no Líbano [2008]. Recentemente, ajudamos a promover a abertura do diálogo entre a Bósnia e a Sérvia, que já levou à normalização da relação bilateral, com a nomeação de um embaixador bósnio em Belgrado. Posso dar muitos outros exemplos.
 
FOLHA - Muitos veem o envolvimento crescente da Turquia nos temas do Oriente Médio como uma resposta à rejeição de alguns países europeus, como França e Alemanha, ao ingresso turco na União Europeia. Essa é a motivação?
 
DAVUTOGLU - De nenhuma maneira. Não vemos essas relações como excludentes. Nosso objetivo estratégico é nos tornarmos membros da UE, e esse processo vai continuar. Ao mesmo tempo, a Turquia quer estar ativamente envolvida em todos os processos nas regiões vizinhas, do Oriente Médio aos Bálcãs, numa política que chamamos de problema zero e integração máxima com a vizinhança. Na verdade, é uma política compatível com os valores europeus.
 
FOLHA - O senhor esteve com a secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton. A esta altura, os 

EUA ainda estão dispostos a aceitar um acordo sobre o programa nuclear iraniano?
 
DAVUTOGLU - Claro que a melhor opção é uma solução diplomática, em que todos ganhem. O Irã porque não enfrentará sanções e sua economia vai se recuperar. O governo Obama porque será um sucesso de sua política de engajamento e multilateralismo. Será uma vitória para a ONU, que não terá essa agenda negativa, e para os vizinhos do Irã, porque, se houver sanções, eles, e principalmente a Turquia, serão os mais prejudicados. Com sanções, todos perderão. Por isso, e o Brasil concorda, temos que focar numa solução diplomática.
 
FOLHA - Mas os EUA estão dispostos a aceitar?
 
DAVUTOGLU - Apesar de estarem trabalhando por sanções, eles pelo menos não excluem uma solução diplomática, e dizem que ficarão satisfeitos se houver uma.
 
FOLHA - Analistas dizem que os iranianos só irão ceder quando receberem garantias dos EUA de que não serão atacados e que não haverá operações de mudança de regime. O senhor concorda?
 
DAVUTOGLU - São duas questões diferentes. Mesmo que não houvesse uma questão nuclear, todos os países devem se respeitar. A reconstrução da confiança entre EUA e Irã resultaria em menos tensões.
 
FOLHA - O chanceler Amorim sugeriu que a Turquia poderia ser a fiel depositária do estoque de urânio de baixo enriquecimento do Irã, até que os iranianos possam receber de França e Alemanha o combustível para seu reator médico. Isso é fato?
 
DAVUTOGLU - A Turquia está assumindo riscos ao se dispor a isso. Não queremos obter prestígio ou levar vantagens. É uma questão de responsabilidade. Queremos ajudar a resolver essa questão, do contrário todos sofrerão. É preciso entender isso. Não haverá vencedores numa confrontação.
 
FOLHA - Então vocês estariam dispostos a ser os depositários?
 
DAVUTOGLU - Claro.
 
FOLHA - E os iranianos estão dispostos a aceitar o acordo nesses termos?
 
DAVUTOGLU - Em princípio eles aceitam, mas precisam de mais detalhes sobre modalidades.
 
FOLHA - O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, não é bem visto no Brasil. Houve muitas críticas quando o presidente Lula o recebeu. Isso também é um problema para a Turquia?
 
DAVUTOGLU - O Irã, para nós, é um vizinho. Temos laços históricos. Nossas fronteiras não mudaram nos últimos 350 anos. É uma relação estável, e estamos vendo isso [a questão nuclear] dessa perspectiva. Não achamos que seja correto julgar os líderes dos países vizinhos, isso cabe ao povo iraniano.
 
FOLHA - A Turquia liderou as críticas a Israel durante a ofensiva contra Gaza. Os israelenses dizem que vocês têm um padrão duplo, porque atacam as bases do PKK (guerrilha independentista curda) no Iraque. Como o senhor responde?
 
DAVUTOGLU - Não há comparação. Em primeiro lugar, não somos invasores em nenhum lugar. Respeitamos a integridade territorial do Iraque. No caso da Palestina, há territórios ocupados e os palestinos estão tentando defender sua terra. Sim, houve operações [turcas] no norte do Iraque porque eles [o PKK] estavam atacando a Turquia e cidadãos turcos. Mas em nenhuma houve vítimas civis. Elas foram dirigidas apenas a terroristas do PKK. No caso de Gaza, 1.500 mulheres, crianças e inocentes foram mortos, 5.000 ficaram feridos, e houve ataques indiscriminados a uma cidade superpopulosa como Gaza. Nós nunca atacamos civis, nunca fazemos operações em áreas povoadas. Se houver um ataque terrorista contra nós, fazemos operações contra os terroristas. Essa é a diferença.
 
FOLHA - A questão armênia é ainda hoje uma fonte de tensão com os EUA por causa das resoluções aprovadas no Congresso americano contra o genocídio [de armênios durante a dissolução do Império Otomano] do início do século passado.
 
DAVUTOGLU - O chamado genocídio.
 
FOLHA - Por que o senhor acha que não foi um genocídio?
 
DAVUTOGLU - Em primeiro lugar, por princípio a história não deveria ser julgada por políticos, com objetivos políticos. Somos contra a politização da história. No Congresso americano, os que votaram por essa resolução não são especialistas, não sabem nada da história. Sua principal motivação é satisfazer seu eleitorado. Se todos os Parlamentos começarem a fazer isso, haverá muitos casos e todos os países votarão uns contra os outros.
São os historiadores e acadêmicos que devem se pronunciar sobre eventos históricos. A Turquia está disposta a discutir todos esses temas por meio de uma comissão histórica, que foi a nossa oferta nos protocolos negociados com a Armênia. Estamos trabalhando de maneira pacífica para normalizar nossas relações com a Armênia e entre turcos e armênios, onde eles estejam.
Mas, se alguém e se alguns países e instituições nos insultam por meio dessa questão, criam um grande problema, porque 1915 para nós foi também o ano de Galípoli [conhecida no Ocidente como Batalha de Dardanelos, em que os britânicos tentaram tomar Constantinopla, hoje Istambul], quando milhares de turcos foram mortos e outros milhares tiveram que migrar dos Bálcãs, do Cáucaso.
 
FOLHA - Há entre alguns líderes árabes a desconfiança de que a Turquia estaria tentando reviver o Império Otomano. Como o senhor responde a essas suspeitas?
 
DAVUTOGLU - A Turquia respeita todos os países que foram parte do território otomano no passado. Somos Estados iguais, não queremos dominar nenhum deles nem a região. Mas, por causa da história comum, temos certas responsabilidades. Por exemplo, quando houve a guerra na Bósnia, em 1993, e milhares de bósnios foram mortos, milhares de mulheres bósnias foram estupradas, os bósnios pediram ajuda a nós, viram na Turquia um lugar de refúgio.
O mesmo aconteceu em Kosovo, na Tchetchênia. Quando os curdos foram perseguidos por Saddam [Hussein] no Iraque, mais de 195 mil vieram para a Turquia. Por quê? Porque acham que podemos ajudá-los a resolver seus problemas. Essas comunidades consideram que temos responsabilidades especiais, e estamos tentando dar conta delas. Tentamos criar ordem à nossa volta, não dominar nenhum país ou região.

FOLHA - O senhor já foi descrito como uma mistura de Maquiavel [1469-1527] e Rumi [1207-1273], o poeta persa. O senhor concorda com essa descrição?
 
DAVUTOGLU - Rumi é da minha cidade natal, Konya. Ele é turco, mas escreveu em persa. Eu fui influenciado por sua filosofia porque ele trabalhava, por meios de seus livros, na promoção da harmonia cultural, do diálogo entre pessoas de diferentes origens e crenças. Ele era um visionário da paz.
 
FOLHA - E a parte Maquiavel? No jargão das relações internacionais, essa combinação quer dizer que o senhor é uma mistura de idealismo e realismo.
 
DAVUTOGLU - Não acho que tenho nada a ver com Maquiavel. Mas, na formulação e na implementação da política externa, temos que ser realistas, no sentido de entender a situação real. Mas não podemos ignorar a dimensão dos valores.

Nenhum comentário:

Postar um comentário