A militância poética de Geir Campos
Exemplo raro de poeta que uniu o rigor estético e literário com a luta social e política, o capixaba Geir Campos – que foi um dos editores do Violão de Rua do CPC da UNE em 1962 – é um desses autores que precisam ser redescobertos e difundidos.
Por José Carlos Ruy
Do ponto de vista formal, tanto a obra de Geir Campos como a de outros que, como ele, colocaram sua arte a serviço da luta democrática e social, não ficam nada a dever aos concretistas. O que os diferencia é uma militância política mais nítida e daí, certamente, o pouco apreço com que, nas últimas décadas, são tratados pela mídia.
Alguns títulos
Antologia poética. Rio de Janeiro, Léo Christiano Editorial, 2003 (contém praticamente toda a obra poética de Geir Campos)
A Profissão do Poeta & Carta aos Livreiros do Brasil. Rio de Janeiro, Imprensa Oficial, 2002 (organizado por Aníbal Bragança e Maria Lizete dos Santos)
Tarefa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira; São Paulo, Massao Ohno Editora. 1981 (antologia)
Poemas de Geir Campos
Poética
Eu quisera ser claro de tal forma
que ao dizer:
- rosa!
todos soubessem o que haviam de pensar…
Mais: quisera ser claro de tal forma
que ao dizer:
- já!
todos soubessem o que haveriam de fazer.
(1957)
Tarefa
Morder o fruto amargo e não cuspir
mas avisar aos outros quanto é amargo,
cumprir o trato injusto e não falhar
mas avisar aos outros quanto é injusto,
sofrer o esquema falso e não ceder
mas avisar aos outros quanto é falso;
dizer também que são coisas mutáveis...
E quando em muitos a noção pulsar
— do amargo e injusto e falso por mudar —
então confiar à gente exausta o plano
de um mundo novo e muito mais humano.
(1957)
Alba
as flores não têm pressa nem os frutos:
sabem que a vagareza dos minutos
adoça mais o outono por chegar.
Portanto não faz mal que devagar
o dia vença a noite em seus redutos
de leste – o que nos cabe é ter enxutos
os olhos e a intenção de madrugar.
(1957)
Soneto fabril
Parque, sim, mas parques industriais:
Neles é que passeia o nosso amor
Em bairros pouco residenciais
Onde ronrona a máquina a vapor.
Das chaminés das fábricas saem mais
Nuvens (claras, escuras) de vapor
E de fumaça, com a cor das quais
O azul do céu muda-se noutra cor.
Pairando entre esse céu assim mudado
E a terra onde prossegue a mesma vida
Com seu esquema aceito mas errado
Retém-se o nosso olhar em bagatelas
- que de pequenas coisas é tecida
A glória de viver e acha-las belas.
(1957)
4ª cantiga de acordar mulher
Bom é sorrires, olhar
em mim: não vês
o inimigo, o rival
jamais.
Na caça, não serás
a presa; não serás,
no jogo, a prenda.
Partilharemos, sem meias
medidas,
a espera, o arroubo, o gesto,
o salto, o pouso e o sono
e o gosto desse rir
dentro e fora do tempo
sempre que nova
mente
acordares
(1964)
7ª Cantiga de acordar mulher
Se te chamarem flor
toma cuidado:
vê se não é gente que te quer por
numa redoma – lindo objeto – a vegetar
alheia a tempo e lugar!
Se te chamarem flor,
acorda e toma cuidado:
olha que te levam para o mesmo lado
de tanto destino mal-aventurado!
(1964)
8ª Cantiga de acordar mulher
Vozes da esquerda, surdas,
e vozes da direita, afinadíssimas,
hão de louvar-te a arte
de ser mulher:
mansa como uma ovelha,
jeitosa como uma gata de luxo,
dócil e generosa como uma árvore
a se multiplicar em sombra e frutos,
como uma estátua impassível,
hábil de acordo com as conveniências,
e acima disso
crente em ser esse o teu ideal de vida…
Acorda: pois foi essa
a sorte que escolheste?
(1964)
9ª cantiga de acordar mulher
Um dia te acharás
sem inteirar a casa:
ouvirás o marido ressonando,
os filhos dormindo em calma…
O espelho te acenará,
te lembrará coisas da mocidade,
coisas da meninice,
te mostrará vindas algumas rugas;
contemplarás o espelho,
o quarto, a casa;
perguntarás por ti mesma,
pelo teu próprio destino
— e o espelho fará silêncio:
será o sinal de estares acordando.
(1964)
Da profissão do poeta
Da
identificação
profissional
Operário do canto, me apresento
sem marca ou cicatriz, limpas as mãos,
minha alma limpa, a face descoberta,
aberto o peito, e — expresso documento —
a palavra conforme o pensamento.
Do
contrato de
trabalho
Fui chamado a cantar e para tanto
há um mar de som no búzio do meu canto.
Embora a dor ilhada ou coletiva
me doa, antes celebro as coisas belas
que movem o sol e as demais estrelas
— antigos temas que parecem novos
de tão gratos ao meu e aos outros povos.
Da
relação com vários
ofícios
Meu verso tine como prata boa
pesando na confiança dos bancários;
os empregados no comércio bem
sabem como atender aos que encomendo
e recomendo mais do que ninguém;
aos que funcionam em telefonia
com ou sem fio, rádio, a esses também
sei dizer à distância ou de mais perto
a cifra e o texto no minuto certo;
para os músicos profissionais,
sem castigar o timbre das palavras
modulo frases quase musicais;
para os operadores de cinema
meu verso é filme bom que a luz não queima;
trilho também as estradas de ferro
e chego ao coração dos ferroviários
como um trem sempre exato nos horários;
às equipagens das embarcações
de mares ou de lagos ou de rios
meu verso fala doce e grave como
doce e grave é a taboca dos navios;
nos frigoríficos derrete o gelo
da apatia, se é para derretê-lo,
meu canto a circular nas serpentinas;
à boca da escotilha ou nas esquinas
do cais, o meu recado é força viva
guindando a atenção dos homens da estiva;
desço cantando aos subsolos e às minas
onde outros operários desenterram
o minério de suas artérias finas;
a outros, que dão sua têmpera aos metais,
meu canto ajuda feito um sopro a mais
aflando o fogo em flâmulas vermelhas;
aos colegas que lidam nos jornais
boas noticias dou e, mais do que isso,
jeito de as repetir e divulgar
quando o patrão quisera ser omisso;
à gente miúda, pronta a ser maior,
passo lições de um magistério puro
e o que é dever escrevo a giz no muro;
para os químicos sei fórmulas novas
que os mártires elaboram nas covas...
e a todos que trabalham vai assim
meu canto sugerindo meio e fim.
Do
horário do
trabalho
Marcadas as minhas horas de ofício,
de dia em sombras pelo chão e à noite
no rútilo diagrama das estrelas,
só quem ama o trabalho sabe vê-las.
Dos
Períodos de
descanso
Seja domingo ou dia de semana,
mais do que as horas neutras do repouso
confortam-me os encargos rotineiros;
meu descanso é confiar nos companheiros.
Do
direito a
férias
Nunca me participam por escrito
ou verbalmente os ócios que mereço,
mas sempre gozo bem o merecido:
pois o ócio não é ofício pelo avesso?
É quando fio o verso; depois teço.
Da
remuneração das
férias
Em férias tenho a paga de saber
lembrado o verso meu por quem o inspira;
é como se outra mão tangesse a lira
Do
salário
mínimo
Laborando entro os pontos cardinais,
de norte a sul, de leste a oeste, vou
cobrando aqui e ali quanto me basta:
o privilégio de seguir cantando.
(Imposto é cuidar onde e como e quando.)
Do
expediente
noturno
Trabalho à noite e sem revezamentos.
Se há mais quem cante, cantaremos juntos;
sem se tornar com isso menos pura
a voz sobe uma oitava na mistura.
Da
segurança do
trabalho
Mesmo no escuro, canto. Ao vento e à chuva,
canto. Perigo à vista, canto sempre;
e é clara luz e um ar nunca viciado
e sol no inverno e fresca no verão,
meu canto, e sabe a flores se é de flores
e a frutos se é de frutos a estação.
Só não me esforço à luz artificial
com que a má fé de alguns aos mais deslumbra
servindo-lhes por luz o que é penumbra;
também quando o ar parece rarefeito
a lira engasga, o verso perde o jeito.
Da
higiene do
trabalho
Não canto onde não seja o sonho livre,
onde não haja ouvidos limpos e almas
afeitas a escutar sem preconceito.
Para enganar o tempo ou distrair
criaturas já de si tão mal atentas,
não canto...
Canto apenas quando dança,
nos olhos dos que me ouvem, a esperança.
Da
alteração de
contrato
etc.
Meu ofício é cantando revelar
a palavra que serve aos companheiros;
mas se preciso for calar o canto
e em fainas diferentes me aplicar
unindo a outros meu braço prevenido,
mais serviço que houver será servido.
(1959)
Eu não conhecia Geir Campos. As poesias dele me impressionaram e algumas são muito emocionantes.
ResponderExcluirVocê escreve muito bem Thiago, parabéns.
Vou acompanhar seu blog com mais frequência.
Oi, Gabi.
ResponderExcluirEste texto eu tirei do Portal Vermelho. Eu tbém não conhecia a obra de Campos, só tinha ouvido falar dele por aí!
Beijos!