terça-feira, 6 de julho de 2010

DUETO COM LUDMYLLA


Seus olhos estavam bem abertos, fixos no teto. A luz do sol passeava pelo quarto, na medida em que carros passavam pela rua. Estava fresco.
O sonho tinha sido bom. Ele sabia disso pela sensação de paz e pela vontade de sorrir que sentia. Os músculos do rosto se moviam lentamente e, sempre que ele se distraía, percebia que estava sorrindo.

Era um sorriso que escapava entre seus lábios e faziam também seus olhos brilharem e encherem de emoção que ele não sabia explicar, que não sabia dizer as características do que vira aquela tarde e nem sabia de onde vinha toda aquela chama que o enchia a alma. Só vinha á sua mente ela e seu belo vestido azul que cintilava com os raios de Sol, que espelhava em todas aquelas pessoas o vislumbre de se depararem com tanta beleza e sentimento em forma de poesia. Ela que encantava tudo e á todos o fez chorar tantas e tantas noites, o fez perder o sono e ficar sem a minima noção de onde procurá-lo.

E, então, ele se lembrou dela, como há muito tempo não fazia. A lembrança fez com que seus olhos se fechassem. Ele se lembrou de seu sorriso, de seu cabelo ao vento. Ele se lembrou de como ela colocava as mãos dentro dos bolsos do macacão.
Seus lábios estalaram por um momento.
Ele se lembrou do abraço que ela lhe dera da primeira vez em que cumprira uma promessa. Ela se aproximou devagar e o envolveu. Então, ela começou a chorar. Era um choro bom. Ele se emocionou.
“Por favor, por favor, não suma nunca mais, tá bom? Estou aqui”, ele tinha lhe dito, tantos anos atrás. 
Seu lábio estalou e, ainda deitado, ele percebeu que os olhos começavam a ficar úmidos. Afastou o pensamento com esforço e se levantou da cama.
Ele se sentou na beirada e estendeu a mão até o criado-mudo, apanhando um cigarro de um maço. Acendeu. Tragou.
A fumaça não dissipou a memória.
Ele ainda se lembrava de cada sorriso, de cada movimento, de cada lágrima, de cada sussurro e de cada grito. Lembrou de quando se aproximava dela, sem saber muito bem o que fazer, como um menino, e se lembrou da última vez em que ela se afastou.
E, daquela vez, ambos sabiam que seria para sempre.
Ele se levantou. Caminhou até a janela, tragando o cigarro e lançando a fumaça no espaço.
Ele se lembrou das noites em que fumaram juntos na varanda da casa dela. Os olhos azuis, os cabelos mais claros à luz da lua.
Era doloroso. Era triste. E ele sorriu assim mesmo.

Mas mesmo assim ele luta contra, mesmo assim ele deixa com que os dias escorram entre seus dedos e esfriem suas mãos. Tanto tempo se passou, tantos Janeiros foram e voltaram mas ela continua ali, presa no canto de sua memória. Ele busca, tenta encontrar o novo, tentar achar motivos que o façam tentar denovo, que o permitam se soltar da memória mais viva e presente que ele ainda tem. Mas toda a poeira em seu quarto, a colcha azul, as almofadas ciano, o espelho oval, os perfumes encima da pia do banheiro, e um colar esquecido no canto do tempo não o deixa nunca mais. Essas marcas de quem um dia esteve ali, de quem a muito tempo viveu ali, as marcas que ele não consegue dissipar, mas que ao mesmo tempo não quer se desfazer, quer tornar cada vez mais essa dor em exposição, cada corte dessa cicatriz em carne viva e expor ao mundo e a todos que toda a dor se mudou para seu peito e transborda em seus olhos.

A realidade se impôs por um momento: tinha alguém na porta. A campainha, insistente, tocou de novo.
Ele caminhou até a porta, devagar. Abriu. Um sorriso o esperava.
- E então? Tá tudo bem?, perguntou o sorriso.
- Claro. E você?
- Comigo está tudo ótimo. Você é que anda sumido. Achei que era uma boa passar por aqui e ver se você ainda estava vivo.
- Deixa de ser ridículo, ele começou, sem muita ênfase.
O amigo entrou no apartamento e caminhou até a janela. Depois, virou-se e o encarou; o sorriso havia desaparecido.
- Há quantos anos a gente se conhece, Marcos?
- Mais de dez...
- Exato. Mais de dez. E há quanto tempo ela foi embora?
- Olha, vamos deixar isso pra lá, tá?
- Claro. Eu deixaria isso pra lá se você pudesse deixar isso pra lá. Vira e mexe, você fica assim.
- Nem sempre é assim tão fácil...
- Sabe, eu estou cansado disso. Quer ver como pode ser fácil, se você ao menos tentar? Põe um casaco e me segue.
- Pra onde?
- “Pra onde”? E isso por acaso faz diferença? Qualquer lugar é melhor do que ficar aqui trancado, se lamentando...
- Obrigado, mas eu prefiro ficar aqui...
O sorriso voltou ao rosto do amigo, mas agora era diferente. Não havia nada amigável naquela formação de músculos e dentes.
- Você quem sabe... Mas eu desisto aqui. Nós não nos falamos mais.
O sorriso foi até a porta e a abriu. Colocou um pé para fora da porta. Depois, o outro. Olhou para trás.
- Estou falando sério, Marcos. Eu juro, cara.
Marcos finalmente estendeu o braço até a cadeira da sala e apanhou o casaco.
Saíram. 
 
- Marcos não adianta lutar contra você cara! Você não pode mais manter cada corte dessa cicatriz ai exposta ao vento, sol ou chuva, a vida segue lá fora, os carros andam como você pode ver. E esse semáforo bem aqui é como a vida, uma hora agente anda, tem cautela, presta atenção, mas na outra hora agente para pra poder recomeçar tudo outra vez. Nada acabou por aqui, é só você ter calma e esperar o tempo passar que logo logo o sinal fica verde denovo e tudo recomeça, a vida toma os caminhos que muitas vezes você não escolhe, mas em algumas vezes você pode evitar passar por uma pista esburacada e não cair em buraco algum certo?
- Como se fosse fácil... Como se eu apertasse a tecla "reset" do meu computador cerebral e esquecesse dela e de todos os dias que se escorreram enquanto eu olhava pra ela hipnotizado, enquanto ela dançava só pra mim todas as noites no meu quarto.
E entraram em algum bar desses escuros noturnos da cidade com cheiro forte de incenso em que se fuma muito, bebe muito e se fala pouco, só se presta atenção nas dançarinas ao redor, e a noite correu, lentamente entre um wisky e outro, entre cigarros de todos os sabores possíveis. Enquanto lá fora o Sol já ia empurrando a lua pra conquistar o seu lugar.
Os dois saíram do bar, com um pouco de bebida e de cigarro a mais. A vida era boa. A vida parecia boa, apenas. Perambularam.
No céu, as nuvens alaranjadas anunciavam o sol que já vinha. Pássaros cantavam e a cidade acordava rapidamente. Ao longe, e cada vez mais perto, buzinas de carros insistiam, ao mesmo tempo que em pedestres saíam dos buracos do metrô cavados no fundo da terra.
Marcos acendeu um Derby vermelho e o estendeu, oferecendo ao Sorriso. Tragaram.
- Não tinha mais dinheiro pra comprar um cigarro decente?, o Sorriso riu.
- Não. Só essa porcaria mesmo.
- Tá melhor?
- Claro que estou. Você que não entende que, às vezes, ficar mal faz parte do jogo, meu caro.
O Sorriso balançou a cabeça. Finalmente, coçou a barba, em consenso.
- Tem razão. Não entendo. E não faço a menor questão.
Os dois ficaram em silêncio enquanto caminhavam. O esforço de andar e falar ao mesmo tempo seria demais naquele momento. Então, os dois apenas continuaram andando.
Então, para a surpresa de ambos, havia uma igreja no meio do caminho. Eles se olharam e decidiram entrar, ainda em silêncio.
Lá dentro, não havia ninguém, a exceção de uma mulher que limpava o piso da igreja. Ela era uma senhora, negra, baixinha, de óculos. Carregava um balde de água junto a si, e um rodo com um pano que já deveria ter sido branco um dia.
Ela limpava o piso da igreja calmamente. Vez ou outra, levantava os olhos para o teto. E, em silêncio, voltava ao trabalho.
Ela os olhou quando entraram e sorriu.
- A missa é só daqui a uma hora, ela disse, sendo amável.
Os dois andaram em sua direção, obviamente bêbados.
- Não viemos para a missa, disse o Sorriso.
- Estamos só de passagem, concluiu Marcos.

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