segunda-feira, 21 de setembro de 2009

CEGUEIRA E INFERTILIDADE: FÁBULAS SOBRE O SOFRIMENTO E A REDENÇÃO

Neste final de semana, assisti novamente ao filme "Ensaio sobre a cegueira", dirigido por Fernando Meirelles, com base em um romance do escritor português José Saramago. O filme narra o caos que segue o mundo após a eclosão de uma epidemia de cegueira que atinge a população, com exceção de uma única mulher.

Ensaio sobre a cegueira é uma fábula, que mostra a facilidade com que nossos valores sociais são abandonados quando as regras do jogo mudam. No filme, vemos um grupo de vítimas da epidemia confinados pelo governo em um asilo, que passam a roubar um dos outros e a abusar um dos outros de formas cada vez mais terríveis, até o desfecho da epidemia.

A fábula do fim do mundo no cinema

No cinema é bastante constante o uso de fábulas nesse sentido, o de mostrar a fragilidade de nossa sociedade e o uso de vários métodos para tentar manter a sociedade em funcionamento, tendo como principal recurso o uso da violência, seja ela física ou não.


Temos como exemplo de filmes dessa linha obras como "Filhos da Esperança", onde uma crise de infertilidade - no filme, passam-se 18 anos sem que o nascimento de nenhuma criança, em parte alguma do planeta, seja registrado - leva a sociedade à beira do colapso.


O ponto central desses filmes - seja a cegueira inexplicável ou a infertilidade - é simples: um ato que não pode ser explicado põe todos os valores tradicionais em cheque, o que leva a sociedade a tentar se defender, para se preservar dessa agressão inesperada.

E o principal recurso para proteger a sociedade, como não poderia deixar de ser, uma vez que estamos pensando em governos, cuja principal finalidade é preservarem-se e perpetuarem-se, é a criação de leis e restrições, mantidas pelo uso da violência do Estado, sem levar em conta se essas leis e restrições são absurdas ou não.

Sofrimento e Redenção

No caso de Ensaio sobre a cegueira e Filhos da Esperança, as catástrofes que acontecem não podem ser explicadas e têm curta duração. No primeiro caso, alguns meses; no segundo, 18 anos. Depois disso, apesar de não sermos informados a respeito nos filmes, a normalidade é restabelecida e o desfecho inspira esperança.



Em grande parte, isso reflete o nosso entendimento sobre a questão do sofrimento. A dor, seja ela individual ou social, tem uma espécie de efeito reparador e, justamente por isso, acredita-se que ela deva ter um fim, do contrário, caso o sofrimento fosse eterno, ele perderia completamente o seu sentido e tornaria-se absurdo.

Neste caso, obviamente, emprestamos ao sofrimento um certo grau de propósito ou de finalidade, o que nos leva a refletir sobre a causa do sofrimento.

Se o sofrimento possui uma causa e tem uma certa duração, presume-se um autor para esses males. No caso dos filmes citados, uma vez que ambas as condições, a da cegueira e a da infertilidade, simplesmente não podem ser explicadas pela ciência e, portanto, permanecem sem cura, mas que, num dado momento, simplesmente deixam de existir, acredito que possamos explicar esses fenômenos como "atos de Deus".

Se levarmos em conta o nosso contexto religioso cristão -  no qual esses filmes estão inseridos, apesar de, no caso de Ensaio sobre a cegueira, o autor do romance em que é baseada a película, José Saramago, tratar-se de um ateu notório por suas declarações anti-religiosas - ou judaico-cristão, como preferem os especialistas no assunto, veremos que existe um histórico de relatos sobre os "atos de Deus" e, até mesmo, sobre sua funcionalidade.

O Livro de Jó: o sofrimento e sua finalidade

Na Bíblia, a melhor e mais completa análise sobre a questão do sofrimento é o Livro de Jó que, acreditam os estudiosos, trata-se provavelmente do primeiro texto bíblico escrito, ou seja, o relato mais antigo contido no livro.

O Livro de Jó é a narração do processo de destruição da vida do patriarca Jó a partir de uma série de desastres causados por interferência maligna. No livro, Deus permite a Satanás que ataque a Jó, considerado um homem íntegro e temente a Deus.

Após a permissão divina, Satanás toma todas as posses de Jó, que era um homem rico; depois, toma a vida de seus familiares, com execeção da esposa do patriarca. Em seguida, uma vez que, apesar das calamidades, Jó permanece fiel a Deus, o Diabo obtém permissão para "ferir Jó em sua carne", e ataca o homem com feridas na pele.

Mas, mais do que simplesmente narrar as desgraças de Jó, o livro também demonstra sua fúria contra o criador, relatada nos diálogos que o patriarca trava com uma série de "amigos" que o visitam em sua dor. Em geral, a linha de argumentação dos "amigos" de Jó é a seguinte: o patriarca deve ter algum tipo de pecado secreto, do contrário, Deus jamais o castigaria com tanta violência.


Nossa concepção sobre o sofrimento é simples: ele tem uma causa e nós o merecemos, até certo ponto. E isso é justificado psicologicamente pela nossa idéia de um Deus de vingança, que pune a injustiça e esmaga o herege, o ímpio e o injusto.

O problema é que a nossa concepção de um Deus poderoso e vingador não se encaixa muito bem com a descrição de Deus fornecida pelo relato bíblico, principalmente se levarmos em consideração a exposição do Novo Testamento.

Ao longo de toda a Bílbia, somos apresentados a um Deus de perdão e reconcilliação, profundamente ap,aixonado pela humanidade, mesmo quando esta humanidade o abandona. Um bom exemplo disso são os relatos das falas de Deus à nação de Israel, quando esta o tinha trocasdo por outros deuses, contidas no livro de Jeremias, por exemplo.


No Novo Testamento, somos apresentados a um Deus que se fez carne e que, portanto, entende a condição humana, uma vez que Ele mesmo a viveu com uma pessoa normal.


Voltando aos filmes

Nos filmes citados no início desta postagem (que ficou longa demais, eu admito), o que chamamos aqui como "atos de Deus" - que trata-se de uma interpretação possível, mas nada além disso - têm como função expurgar pecados sociais e isso acontece por meio de pragas: uma praga de cegueira e uma praga de infertilidade, enfermidades que foram citadas no contexto bíblico.

Ao final dos filmes, quando as pragas são eliminadas e a normalidade é restabelecida, podemos compreender a reiteração de que a punição, seja ela divina ou não, mesmo que inclemente e apocalíptica, tem um fim e, portanto, cumpre a um propósito, ou seja, não é desprovida de sentido.


Paz e Bem!

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