quinta-feira, 26 de novembro de 2009

ENTREVISTA: AYUAHASCA

A preservação do intangível
 
Por Bia Labate e Ilana Goldstein

Antropólogo e ex-presidente do Iphan explica como funciona a complexa salvaguarda de bens imateriais, como a do uso ritual da ayahuasca

Em abril de 2008, alguns dos principais centros ayahuasqueiros brasileiros, com apoio de autoridades do Acre, inclusive de seu governador, Binho Marques, encaminharam ao então ministro da Cultura, Gilberto Gil, um pedido para que o Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) reconhecesse o uso da ayahuasca1 em rituais religiosos como patrimônio cultural imaterial brasileiro. A movimentação foi articulada pela deputada federal Perpétua Almeida (PC do B), e ainda aguarda uma resposta por parte do Iphan.
Se por um lado os grupos ayahuasqueiros parecem apostar que o registro reforçará sua instável legitimidade social, por outro lado ele implicará em questões espinhosas: salvaguardar uma prática pode significar cristalizá-la, como se houvesse uma forma “autêntica” e atemporal, quando, na realidade, práticas culturais são dinâmicas, sincréticas e às vezes até contraditórias. Como escreveu certa vez o antropólogo Gilberto Velho, a definição de quais itens do patrimônio cultural devem ser tombados engendra sempre tensões, negociações e conflitos de interesse2.
Em 24 de junho de 2008, o Instituto Nacional de Cultura do Peru declarou os conhecimentos e usos tradicionais da ayahuasca das comunidades nativas amazônicas como patrimônio cultural peruano.
O documento associa a bebida à medicina tradicional dos povos indígenas e à identidade cultural amazônica, e destaca ainda suas virtudes terapêuticas. A medida visaria a impedir o desaparecimento da medicina tradicional peruana e de seus curandeiros, assim como evitar a associação da ayahuasca com “usos ocidentais descontextualizados, consumistas e com propósitos comerciais”.
Aparentemente, a iniciativa peruana nada teve a ver com aquela desencadeada pouco antes do outro lado da fronteira, em Rio Branco. O interessante, no caso brasileiro, é que os grupos ayahuasqueiros, embora mais recentes e de origem urbana, conseguiram estabelecer legitimidade enquanto “guardiões de tradições religiosas e culturais amazônicas”, ocupando, por assim dizer, o lugar do nativo e do tradicional em nosso imaginário, fato que provavelmente colaborou para o seu reconhecimento legal pelo governo, em 1986.
Em 2006, instalações do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal – Alto Santo, uma igreja da década de 1940, localizada na Área de Proteção Ambiental Raimundo Irineu Serra, já havia sido protegida por um decreto do governador Jorge Viana e do prefeito Raimundo Angelim como patrimônio histórico e cultural do Acre. Naquela ocasião, no entanto, o tombamento se referiu estritamente ao patrimônio material. Agora, o que se pede é o registro de um bem cultural imaterial.
Vale ressaltar que a salvaguarda do patrimônio imaterial é algo bastante recente. Desde a criação do Serviço de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), em 1937, vinham sendo declarados dignos de preservação, sobretudo, conjuntos arquitetônicos coloniais barrocos, como Ouro Preto e o Pelourinho.
Os bens materiais tombados –ou seja, inscritos nos Livros de Tombo– devem ser destacados e suas características originais preservadas. No entanto, a Constituição de 1988 sofisticou a legislação, abrangendo também o patrimônio intangível, ou seja, “os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. E em 2001 surgiu o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, inovando ao propor a identificação sistemática e abrangente de bens culturais de natureza processual e dinâmica, bem como a superação definitiva da dicotomia entre cultura material e imaterial3.
Trópico discutiu a possibilidade de se conseguir a salvaguarda do uso religioso da ayahuasca, no Brasil, com um antropólogo que tem pesquisado sobre o binômio propriedade intelectual/conhecimentos tradicionais: Antônio Augusto Arantes, doutor em antropologia pela Universidade de Cambridge (Kings College), pós-doutor em cultura e política pela University of London e professor-titular convidado pelo Departamento de Antropologia Social da Unicamp, que ele ajudou a criar, em 1968.
Arantes foi presidente do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), além de ter sido membro do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico, Arqueológico e Turístico do Estado de São Paulo). Tem vários livros e artigos publicados, entre eles "O Que É Cultura Popular?" (Brasiliense, 2006) e "Produzindo o Passado" (Brasiliense, 1984).
Antes, porém, de analisar na entrevista a questão da ayahuasca, Antonio Arantes explica pormenorizadamente como funciona o complexo tombamento de bens imateriais e fala dos principais dilemas envolvidos no processo. "O patrimônio cultural tangível e intangível é uma construção social que resulta da negociação entre a sociedade e o Estado. Não se trata simplesmente de uma proclamação, em que se anuncia a importância de algo. É muito mais que isso, já que, quando o Estado ilumina uma prática e se compromete com sua salvaguarda, cria-se um fato novo no universo cultural, no horizonte do qual aquele bem faz parte, produzindo consequências", diz ele.
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Como a temática do patrimônio cultural cruzou seu caminho?

Antônio Augusto Arantes: Sou antropólogo, trabalhei a vida inteira nessa área de conhecimento e, por uma razão ou por outra, tenho sido levado para as questões de patrimônio. Sobretudo desde 1982, quando presidi o Condephatt, em São Paulo.
A partir daí, virou um pouco um carma. Acabei reencontrando o patrimônio de várias maneiras. Em 1988, por exemplo, participei de audiências públicas relativas à mudança da Constituição e um dos artigos sobre os quais eu mais me interessei e para o qual procurei contribuir –até por ser, naquela época, presidente da Associação Brasileira de Antropologia–, foi o Artigo 216, que define patrimônio cultural brasileiro.
Esse conceito vinha sendo utilizado no Brasil desde 1937, com a criação do Iphan, porém pautado numa concepção de patrimônio que se referia a valores estéticos e históricos de uma cultura, digamos, hegemônica no país, uma cultura de elite. Havia dificuldade em absorver o fato de que a cultura brasileira foi construída a partir da contribuição de diferentes grupos sociais, em diferentes momentos e contextos históricos. Tinha-se aquela visão do patrimônio branco, católico, português, bem representado pelas edificações do período colonial.

Quais seriam os ícones máximos dentro dessa concepção de patrimônio?

Arantes: A cidade de Ouro Preto é um bom exemplo. Seu conjunto arquitetônico foi um dos primeiros bens do patrimônio cultural brasileiro a ser tombado, e foi feito por diversos motivos: personificava o barroco brasileiro; representava uma expressão da alta cultura; permitia demarcar a posição do Brasil em relação à cultura mundial; e possuía altíssima qualidade artística.
A sociedade brasileira, evidentemente, é uma realidade muito mais diversificada do que essa noção de patrimônio permitia contemplar. Porém, foi só na década de 1980, com a eclosão de movimentos sociais e suas crescentes pressões na esfera pública, que os diferentes agrupamentos e segmentos da sociedade brasileira passaram a ter voz, expressão e lugar mais plenos na legislação brasileira relativa aos direitos culturais.

Até esse momento, então, a legislação brasileira falava apenas em patrimônio material e em bens produzidos ou avalizados pelas elites?

Arantes: Referia-se a bens de natureza material, artefatos de valor histórico, artístico, etnológico e paisagístico. Sempre pensando em termos de bens cujo valor patrimonial era atribuído a partir do espaço acadêmico. Quer dizer, a pesquisa acadêmica era a principal justificava técnica e legal para a proteção desses bens pelo Estado.

Qual foi a nova discussão que emergiu na década de 1980?

Arantes: Foram dois temas. Em primeiro lugar, debateu-se o fato de que as manifestações das práticas culturais não se restringem aos artefatos de natureza material. Há atividades importantes e reconhecidas pela população, como festas, práticas religiosas ou fazeres artesanais que exprimem os valores e as concepções culturais de um grupo social. Portanto, o patrimônio cultural não pode se restringir a objetos e construções.
Em segundo lugar, discutiu-se a idéia de hegemonia. Não faz sentido restringir a proteção do Estado apenas àqueles bens culturais associados a grupos dominantes; a construção do patrimônio nacional deve contemplar a diversidade étnica e social, traduzir a estratificação e a pluralidade que constituem o país como nação.

Como o Iphan e os demais órgãos públicos incorporaram essas discussões?

Arantes: Em 1988, foi aprovado um novo texto constitucional, contendo uma concepção plural de nação e uma visão de patrimônio de natureza material e também imaterial. Mas só em 2000 foi criado um instrumento jurídico permitindo o desenvolvimento de políticas e ações visando à salvaguarda do patrimônio imaterial no Brasil. Trata-se do decreto-lei 3551, elaborado pelo Iphan, pelo Ministério da Cultura e por vários especialistas, entre os quais eu me encontrava. Foram muitas as discussões técnicas, conceituais e políticas que levaram à aprovação desse decreto.

O que o decreto 3551/2000 trouxe na prática?

Arantes: Acima de tudo, ele diferenciou os instrumentos de proteção a serem utilizados para a salvaguarda do patrimônio imaterial daqueles que são utilizados para o patrimônio material. No caso do patrimônio material, fala-se em tombamento, um instituto jurídico que implica na manutenção ou na conservação física de determinado bem, segundo os critérios de valor a ele atribuídos no momento em que se transformou em bem patrimonial.
Evidentemente, os bens culturais não são gerados culturalmente como patrimônio: a posteriori é que podem ser reconhecidos, no processo de construção da nação, como possuindo valor diferenciado –o valor patrimonial. Uma obra de arte tombada deve ser conservada, na medida do possível, tal qual o seu criador a concebeu. Não se admite, a não ser em casos excepcionais, qualquer intervenção que a altere. Já uma edificação, construída para a apropriação cotidiana da população, é objeto de instrumentos de preservação um pouco mais flexíveis, a fim de permitir as mudanças de uso que ocorrem ao longo de décadas ou séculos.
Ainda que tombado, um edifício pode admitir intervenções de requalificação, por exemplo. Mas nada disso serve ao patrimônio de natureza imaterial, que é vivo e dinâmico. Não faz sentido o Estado identificar uma prática emblemática de um segmento do povo brasileiro, em determinado momento, e exigir que seja mantida exatamente da mesma maneira pelos seus praticantes.
Em relação à salvaguarda do patrimônio imaterial –utiliza-se aqui o termo “salvaguarda”, e não tombamento–, a melhor definição que conheço foi dada por uma senhora indiana, numa reunião da qual eu participei, em Nova Déli. Ela dizia: “O patrimônio intangível deve ser nutrido, não preservado”. Ou seja, o papel do Estado, ao identificar uma atividade como sendo de interesse diferenciado, é contribuir para que ela tenha vida longa, para que as condições de sua realização sejam garantidas, permitindo inclusive transformações com o passar do tempo.

Como se deu a sua participação nesse processo?

Arantes: Nessa época, eu e uma equipe do meu escritório trabalhávamos como consultores e desenvolvemos, a pedido do Iphan, a metodologia utilizada no inventário do patrimônio cultural imaterial do Brasil, que até hoje orienta os processos de registro. Essa metodologia considera, acima de tudo, que a identificação das práticas culturais significativas deve partir dos valores atribuídos pelos grupos sociais envolvidos.
É claro que a construção do patrimônio é uma atividade que demanda colaboração entre o Estado e a sociedade civil. Mas a indicação das práticas relevantes para a expressão e reelaboração da identidade de um grupo social deve ser feita pelo próprio grupo, com base nos princípios de auto-identificação e de autodeterminação. O papel dos diversos segmentos da sociedade, associações, entidades culturais etc., enquanto protagonistas, é absolutamente fundamental nesse processo.

É uma abordagem bem inovadora, não?

Arantes: Foi totalmente inovadora, porque, até então, a indicação era feita a partir da pesquisa acadêmica –da história da arquitetura ou da história das artes plásticas, da história da música, da arqueologia... E não fomos nós que concebemos as coisas desse modo; é o novo texto constitucional que articula os bens que constituem o patrimônio cultural da nação àqueles que são referências importantes das identidades dos grupos sociais que formam a nação. Agora, o problema quase insolúvel enfrentado pelo pesquisador é identificar os grupos sociais que formam a nação.

Você mencionou a auto-indicação e o papel dos diversos grupos sociais na definição do patrimônio cultural brasileiro. Qual o limite disso? Eu posso indicar o meu clube, a minha vizinhança e você indicar os seus, por exemplo?

Arantes: Essa é uma questão séria, que exige decisões bastante complexas. Não somente decisões de natureza técnica, mas basicamente decisões de natureza política. Claro que está implicado aí um diálogo entre o Estado e a sociedade. Os grupos propõem as indicações; mas é preciso verificar se ecoam, se fazem sentido para a sociedade mais ampla e em termos da legislação vigente.

Quer dizer, a definição do patrimônio resulta de uma negociação, que pode ser conflituosa, e depende da obtenção de reconhecimento por parte do Estado.

Arantes: Exatamente. Se um segmento da sociedade atribui valor diferenciado à determinada prática, ela ainda tem que ser reconhecida pelo órgão público legalmente responsável por esse reconhecimento e por tudo que dele decorre.
Ao reconhecer um bem como de interesse patrimonial, o Estado se torna corresponsável pela sua conservação, manutenção ou “nutrição”. O Estado passa a ser mais um ator do processo cultural. É preciso lembrar que toda ação nesse sentido, desenvolvida no Brasil, faz parte de um conjunto de ações adotadas mundialmente.
Em 2003, foi aprovada na Unesco a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Imaterial, da qual o Brasil é signatário. Essa convenção estabelece certos parâmetros: no momento em que se dá o reconhecimento, criam-se responsabilidades entre as partes. Enfim, tanto a sociedade tem que querer a parceria do Estado, quanto o Estado, representando o interesse público, precisa analisar a legitimidade da demanda apresentada.

Como é o “passo a passo” do processo de inventário e registro de um bem cultural no Brasil?

Arantes: Para dar um exemplo concreto, imagine que um determinado grupo considere que certa atividade seja referência fundamental na construção de sua identidade, que ela consolide suas redes sociais e realimente os valores e símbolos que constituem a comunidade. Os interessados pelo reconhecimento público dessa atividade se dirigem ao órgão responsável, no caso da União o Iphan, para que seja aberto um processo de estudo de salvaguarda.
Os documentos e exigências necessários para entrar com o pedido de registro encontram-se listados no site do Iphan. Uma vez estando adequadamente informado o pedido de registro do bem, o Conselho Consultivo do Iphan, composto por aproximadamente 25 pessoas ligadas a diferentes esferas e instituições, decidirão, em reunião, se a proposta é realmente consistente, se deve ser acolhida ou não.
Ao trabalho preliminar de instrução e informação, feito pela pessoa ou pela associação que faz o pedido, soma-se um trabalho complementar que é realizado pelo Iphan, de modo a formar o dossiê que será apresentado ao Conselho.

Quanto tempo, em média, leva o processo?

Arantes: Varia bastante. Mas o importante é lembrar que o Brasil, em termos mundiais, foi muito rápido na consolidação dessas ações. Primeiro, porque havia um passivo enorme a ser saudado pelo Estado, na medida em que grande parte do patrimônio cultural da nação não se reduz a artefatos e bens de natureza estética e histórica, definidos convencionalmente.
A partir do momento em que a lei entrou em vigor, ou seja, em 2000, inúmeros segmentos da população brasileira encontraram finalmente brecha para demandas nessa área. Houve uma resposta bastante imediata por parte da sociedade. Começaram a pipocar pedidos externos, além das demandas reprimidas acumuladas dentro na própria instituição, que vinha fazendo estudos e levantamentos há bastante tempo, mas até então não tinha como transformar tais estudos em ações práticas.

Foi nesse momento efervescente, logo após a publicação do decreto 3551, referente ao patrimônio cultural imaterial, que você se tornou presidente do Iphan.

Arantes: Fui convidado a presidir o Iphan em 2003, ano em que, de fato, aconteceram duas coisas importantes. Uma foi a criação do Departamento do Patrimônio Imaterial, reunindo especialistas, não só das tradicionais áreas de arquitetura, história e arqueologia, mas também antropólogos, geógrafos, museólogos e pessoas com outras formações, detentores de sensibilidade e de conhecimento técnico específicos para esse outro tipo de bem patrimonial.
Outra, foi a implementação do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, com verbas próprias. Se antes não se podia atuar na área, porque não havia instrumento jurídico, não havia procedimentos administrativos e técnicos, nem pessoal qualificado, tampouco recursos orçamentários, em 2003 isso começou a mudar.

Quais foram os primeiros pedidos de registro de patrimônio cultural imaterial que chegaram ao Iphan?

Arantes: Antes de 2003, já haviam chegado dois pedidos importantes, que foram os primeiros a serem acolhidos: a arte Kusiwa, dos índios Wajãpi, no Amapá, e a produção de panelas de cerâmica de Goiabeiras, no Espírito Santo. A arte Kusiwa é uma linguagem de pintura corporal que se expressa através da combinação de uma série de símbolos associados à cosmologia desse povo indígena, que se expressa por meio da combinação de uma série de símbolos que não são fixos.
Felizmente, há uma bibliografia etnográfica de alta qualidade produzida na Brasil, então muito do trabalho necessário à identificação desse e de outros bens culturais imateriais se vale do conhecimento etnológico disponível. De qualquer forma, após o reconhecimento da arte Kusiwa, em 2000, tornou-se obrigatória a criação de um programa de salvaguarda para essa prática, que inclui, por exemplo, a construção de um centro de documentação na terra indígena Wajãpi. Eu estive lá em dezembro de 2008, e o prédio estava sendo terminado.

De certa forma, no caso Wajãpi o registro do patrimônio imaterial resultou num patrimônio material.

Arantes: Veja, todo patrimônio imaterial, para ser conhecido de alguma forma, depende de registros materiais, sejam eles textuais, fotográficos, sonoros ou a própria execução do canto, da dança, da ornamentação.

E quanto às ceramistas de Goiabeiras?

Arantes: As paneleiras de Goiabeiras confeccionam aqueles pratos usados na culinária capixaba. Nesse caso, foi registrada a técnica de feitura da cerâmica, e isso foi muito importante, porque as ceramistas estavam enfrentando um problema seriíssimo, que era a instalação de um aterro sanitário ao lado do barreiro onde elas recolhiam argila para fazer as panelas.
O fato de as técnicas de confecção das panelas terem sido reconhecidas como patrimônio nacional fez com que o Estado tivesse que tomar medidas perante o processo de degradação dos recursos naturais necessários à produção desse bem.

O reconhecimento pode servir como atalho para uma reivindicação política que o grupo já fez em outras esferas, sem sucesso? No caso indígena, por exemplo, se uma etnia tem uma prática reconhecida como patrimônio, isso poderia facilitar a demarcação de suas terras?

Arantes: Eu acho que poderia fortalecer uma demanda em outra área, sim, já que certas práticas e valores são especialmente ancorados no espaço. Estou pensando no reconhecimento de lugares sagrados, por exemplo, como aconteceu com os índios Tariano, do alto rio Negro. Foi muito importante o reconhecimento da apropriação cultural que eles fazem da natureza naquela região, onde cachoeiras, rochas e corredeiras são lugares que cristalizam referências cosmológicas.
O conceito de lugar pressupõe o de espaço, mas não se confunde com ele, já que lugar se refere aos modos de apropriação de estruturas edificadas ou naturais. Por exemplo, um templo: considere-se, primeiro, a edificação. Se ela for usada continuamente para as atividades religiosas para as quais aquele espaço foi concebido, o lugar religioso se realiza e se renova constantemente.
Em outras palavras, o lugar religioso se concretiza no espaço edificado da igreja ou do terreiro. Mas também se pode considerar um templo que se transformou em centro cultural ou em museu. O espaço da edificação está lá, mas o sentido do lugar, a forma social de apropriação daquele espaço já é outra, não tem a ver com o sentido original. De qualquer forma, voltando à pergunta, salvaguardar um lugar socialmente construído implica também em proteger o espaço, o território no qual as práticas e crenças se desenvolvem.

Quais foram os outros pedidos reconhecidos pelo Iphan?

Arantes: Ah, foram inúmeros. Eu não lembraria de todos eles agora. Mas vale a pena citar o samba, prática emblemática da nacionalidade, sobretudo no cenário internacional. Na época, um dos problemas que nós enfrentamos no Iphan foi: “Que samba?” Porque o samba vai dos desfiles na Marquês de Sapucaí aos produtos da indústria fonográfica, passando pelo trabalho dos compositores e intérpretes desconhecidos do grande público, pelo samba-de-roda, pela batucada no bar...
A mesma prática cultural, a mesma linguagem, melhor dizendo, se realiza de várias maneiras no território nacional. O samba é tudo isso. Hoje em dia, dificilmente se pode imaginar que um dos níveis dessa realidade exista sem referência ou “feedback” do outro. Tudo se interrelaciona. Aí, quando se colocou a questão de considerar o samba como patrimônio cultural do Brasil e propô-lo à Unesco, dentro do programa das obras-primas do patrimônio oral e imaterial da humanidade, decidiu-se pelo samba de roda do Recôncavo Baiano.
Por quê? Porque o samba de roda do Recôncavo Baiano diz respeito a uma comunidade específica de praticantes, ou a várias comunidades numa mesma região; ele se refere a um modo particular de execução, com tipos de instrumento, harmonia, repertório, indumentária e coreografia que lhe são próprios. Ele pode ser interpretado como uma expressão contemporânea daquela matriz que, de certa maneira, gerou várias outras expressões do samba.
Não se pode esquecer, por exemplo, que nos terreiros das “tias” que foram da Bahia para o Rio de Janeiro, o samba de roda e o samba de fundo de quintal se transformaram no samba dos morros cariocas, no início do século XX.

Houve muitos conflitos até se chegar ao consenso de que o samba de roda do Recôncavo seria o escolhido?

Arantes: Não chegou a haver propriamente conflitos, mas houve muita discussão. Tomou-se a decisão de trabalhar com o samba de roda da Bahia como ponto de partida para o estudo de um conjunto de variantes do samba. Seria o mesmo problema para o caso do bumba-meu-boi.
Pelo menos enquanto estive no Iphan, sempre defendi a idéia de que o bumba-meu-boi, se protegido, deveria abranger todas as variantes dessa prática. Porque não existe uma variante que seja mais verdadeira e autêntica que as outras. Nada mais é “original”, no sentido de ser idêntico ao que se fazia 70 anos ou 200 anos atrás. Tudo dialoga com tudo, hoje em dia é difícil falar em manifestação “original” ou autêntica. No máximo, podem-se encontrar variantes praticadas por comunidades mais conservadoras.

Você falou em variantes mais “essencialistas”. Na antropologia, a questão da “essencialização da cultura” –por parte dos pesquisadores e também dos praticantes– vem sendo bastante discutida. É a esse tipo de “essencialização” que você acaba de se referir?

Arantes: A “essencialização” é a visão de que as práticas culturais estão dentro de um baú: aquilo que se alterou com o passar do tempo não vale tanto, pode ser descartado. Dentro dos estudos de cultura popular, um dos grandes debates, durante muito tempo, foi exatamente em torno dessa visão de que a idade de ouro da cultura popular está sempre no passado.
O essencialismo se traduz em afirmações como: “Antigamente é que as modas de viola eram bonitas”. Ou então: “Os repentistas de hoje já não são tão bons poetas como os do passado”. Trata-se de uma visão totalmente na contramão da história, que rejeita o dinamismo da cultura.

Geralmente essa é a visão “nativa”, quer dizer, o discurso dos praticantes sempre afirma que sua prática é original, se conserva, segue determinada tradição.

Arantes: Não, eu acho que nem sempre é assim. Há muitos casos em que a inovação é valorizada. Aliás, é um problema sério em relação à preservação dos bens materiais. É difícil conservar, por exemplo, conjuntos arquitetônicos, porque os proprietários ou moradores dos imóveis querem mudar a fachada, querem pôr uma janela mais moderna, querem instalar ar-condicionado... Enfim, querem tirar partido daqueles bens integrando-os aos modos de vida de hoje.
Por outro lado, é possível observar em vários grupos sociais uma retomada de práticas e valores consideradas “tradicionais”. São movimentos no sentido de recuperar peças que foram retiradas das aldeias e levadas para museus, de reaver gravações de cantos ou registros fotográficos de certa época, de reconstruir um idioma. A reinvenção de atividades que não são mais praticadas, a partir da valorização de práticas antigas ou anteriores –eu não vou dizer “tradicionais”– está acontecendo no mundo todo, não só no Brasil.

Quando o poder público faz uma seleção das variantes que serão preservadas, ele não acaba traçando fronteiras entre o que é ou não tradicional ou considerando certas práticas mais “legítimas” que as demais?

Arantes: Tanto tecnicamente como teoricamente questionam-se, cada vez mais, as formas de salvaguarda do patrimônio imaterial que congelam as práticas culturais. Como já disse, a função da preservação como política pública é nutrir, arejar, dar elementos para que as práticas culturais continuem florescendo, apesar da asfixia do mercado. Não obstante, em muitos casos é preciso escolher.
Quando estávamos falando do programa da Unesco, faltou explicar que uma das razões para termos priorizado o samba de roda da Bahia foi o fato de esta ser uma das variantes em situação mais precária, por várias razões, que não cabe detalhar aqui. Daí a necessidade da salvaguarda.
Ao mesmo tempo, o samba urbano carioca, que está por trás das composições reproduzidas pela indústria cultural, não poderia ser deixado de lado, de modo que também foi registrado como bem do patrimônio nacional. O interessante é que a identificação dos elementos da matriz carioca do samba, que estivessem presentes, de uma maneira ou de outra, na maioria das manifestações conhecidas, foi um trabalho feito em conjunto com as escolas de samba.

Poderia o reconhecimento do patrimônio cultural gerar resultados inesperados, negativos, para a própria prática, como a folclorização?

Arantes: A experiência com a salvaguarda do patrimônio imaterial não tem ainda história suficiente para permitir avaliação profunda. Veja que isso começou no Brasil em 2003. Nós estamos em 2008, são apenas cinco anos. Mas acho que, sim, pode gerar folclorização.
Por exemplo, se ocorresse a transformação do samba de roda em espetáculo exclusivamente para o palco. Quando se decidiu salvaguardar o samba de roda, era porque uma comunidade o praticava em seu próprio meio, expressava-se por meio dele, e era reconhecida por aquela música e dança, cuja prática realimentava suas relações sociais.
No momento em que a dança fosse levada para o palco, e só para o palco, fosse executada por dançarinos profissionais e pautada em contratos com empresários do show business, provavelmente o sentido da preservação original estaria perdido, porque os vínculos da prática com a comunidade também se teriam perdido. Quer dizer, não é exatamente a música e a dança, mas um determinado grupo social executando e dançando a música que precisa de proteção.

O reconhecimento de uma variante cultural atrelada a uma comunidade específica não restringe o alcance da salvaguarda?

Arantes: O caso da viola de cocho traz uma questão interessante, nesse sentido. A viola de cocho foi estudada e identificada como patrimônio no Mato Grosso do Sul, entretanto a construção dessa viola e o seu uso são anteriores à divisão entre Mato Grosso e Mato Grosso do Sul.
A vinculação da viola com Mato Grosso do Sul gerou um protesto enorme. Diziam: “Ela é mato-grossense”, nem do norte, nem do sul. Bem, na verdade havia sido declarada como patrimônio “nacional”. Mas o fato é que o prestígio dos fabricantes da viola, os luthiers, e o interesse pelos tocadores cresceram com o reconhecimento do instrumento como algo de valor para a nação.
Esse é um ponto importante. Todo bem do patrimônio imaterial diz respeito a comunidades específicas de praticantes, na origem, mas o reconhecimento dessa prática, desse saber, como integrante do patrimônio oficial atribui a ela um valor e uma significação muito mais amplos do que os locais.

Houve um pedido de reconhecimento do uso da ayahuasca como parte da cultura imaterial do Brasil, em 2008. Você conhece pedidos similares em outros países?

Arantes: A ayahuasca, pelo que entendo, envolve todo um processo de preparo do chá, de cultivo e de manejo das plantas, além de se relacionar a certas práticas religiosas, visões de mundo e formas de sociabilidade. É preciso definir de que aspectos estamos falando.

Essa é uma boa pergunta. Não parece que se tenha clareza do que exatamente deve ser salvaguardado: os rituais religiosos, as religiões ou a bebida. Os próprios grupos que entraram com o pedido fizeram uma série de reuniões pra tentar definir o que seria reconhecido. Soubemos por Marcos Vinícius Neves, que é o presidente da Fundação Garibaldi Brasil, que se está mudando o foco dos rituais e da religião para a idéia de uma “cultura ayahuasqueira”. O que acha disso?

Arantes: Eu não me lembro de um caso de registro bem-sucedido nesse sentido. Na verdade, existem alguns casos, que eu preferiria não especificar, de propostas de salvaguarda de “culturas” religiosas que não deram muito certo, porque o instrumento de salvaguarda é mais eficaz, eficiente e útil, quanto mais específico ele for.
Tudo pode ser considerado “cultural”. Se não se tiver limites, quando se for pensar em ações de salvaguarda, não se vai saber o que fazer. Para que haja a salvaguarda de um bem ou de uma prática cultural, não basta pura e simplesmente que haja o seu reconhecimento público. É preciso que se desenvolva um conjunto de ações concretas de salvaguarda.
Então, se o que se pretende é salvaguardar o conhecimento do preparo do chá e do cultivo da planta, haverá instrumentos técnicos e jurídicos apropriados para isso, serão levados em conta os aspectos e técnicas que devam e possam ser tornados públicos ou não, já que o registro como patrimônio cultural confere uma publicidade enorme às práticas e aos conhecimentos envolvidos.
No caso de se pretender salvaguardar os rituais, também é necessário precisar quais aspectos serão salvaguardados e tornados públicos e garantir que estejam presentes as condições para a sua reprodução e vitalidade, questões que são da alçada da comunidade praticante.

Seria melhor falar em várias comunidades de Rio Branco.

Arantes: Realmente, “comunidade ayahuasqueira” eu acho vago. É como se você falasse, por analogia, “os sambistas do Brasil”. Categorias vagas e inclusivas demais não são próprias à elaboração de planos de salvaguarda.

Não sabemos exatamente qual será o objeto do eventual reconhecimento, mas, supondo que ele venha a ocorrer, a proteção aos saberes associados à ayahuasca se estenderá a todos os praticantes ou ficará restrita aos grupos que entraram com o pedido?

Arantes: Depende do tipo de ação que se planeja. Há ações mais voltadas a praticantes específicos e outras que atingem os praticantes em seu conjunto. Digamos que exista um grupo de praticantes que detenha o saber do cultivo e da preparação da bebida de uma forma exemplar, completa e diferenciada.
Algumas ações poderiam ser desenvolvidas com esse grupo em particular, visando à proteção e à valorização de sua atividade. Mas é possível pensar também em um plano de ação que preveja a reunião da documentação disponível sobre as transformações que a prática vem sofrendo ao longo das décadas ou séculos, sistematizando variantes locais, a fim de criar um centro nacional de referência sobre a ayahuasca. Esse centro seria uma ação de salvaguarda que diria respeito a toda comunidade –não só de praticantes, como também de pesquisadores.

A Barquinha, a igreja do Ciclu-Alto Santo e a União do Vegetal foram as autoras do pedido junto ao Iphan, e a idéia é que sejam salvaguardados os conhecimentos a elas associados. Porém, o que se observa é uma tremenda variedade e uma grande expansão do uso da ayahuasca: alguns grupos se subdividiram e afirmam seguir uma determinada linhagem; outros se dizem sucessores legítimos de outro mestre, e assim por diante. Como o reconhecimento estatal lidaria com a pluralidade existente?

Arantes: Uma possibilidade de abordagem da situação seria tipificar as várias ocorrências e, dentro de cada tipo, escolher casos exemplares. Isso aconteceu com os terreiros de candomblé na Bahia.
Foi realizada uma pesquisa antropológica sobre centenas de terreiros existentes, patrocinada pelo Iphan e pelo Instituto do Patrimônio Cultural da Bahia. O que eles fizeram? Mapearam os templos existentes em Salvador, identificaram tipos nos quais se encaixavam e, para cada tipo, indicaram os exemplares mais significativos.
Essa classificação antropológica é uma construção que diz respeito –e isso é importante– à configuração da prática naquele momento. Evidentemente, se tivesse sido feita décadas antes ou décadas depois, o resultado seria diferente.

A classificação que os antropólogos e o Estado fizeram do candomblé incorporou alguns princípios do campo, ou seja, os discursos tradicionalistas que reconhecem alguns terreiros como mais “autênticos” e tradicionais do que outros?

Arantes: Não teve essa atribuição de valor. Nós estamos falando a respeito de diferenciação. Dizer que A é diferente de B não é dizer que A é superior ou inferior a B. Agora, pode ser que colocar A e B como equivalentes, no mesmo sistema de classificação, incomode tanto A como B, que prefeririam não ser identificados como “farinha do mesmo saco”.
Do ponto de vista da preservação da prática, o que interessa é o principio da formação dos vários terreiros e linhagens, a dinâmica de fragmentação e fusão. O estudo antropológico deve focalizar esse princípio dinâmico, que ajuda a explicar os casos anteriores e posteriores à tipificação. Se a idéia é salvaguardar a prática, então são necessárias garantias para que continue ocorrendo a adequada expressão da diversidade que se considera constitutiva do candomblé.
Não faz sentido querer “higienizar”, enaltecer os aspectos considerados mais “puros”: seria como querer preservar a vida vegetal fazendo uma coleção de folhas secas.

Você tem algum palpite de qual poderia ser a importância ou o impacto do reconhecimento dos saberes relacionados à ayahuasca?

Arantes: Eu acho que seria um fato social significativo, quer dizer, existe um número enorme de praticantes, tanto no contexto de povos indígenas, quanto de populações caboclas e mesmo urbanas, nacionais e estrangeiras. Que aspecto deve ser objeto de salvaguarda é uma pergunta que só um estudo aprofundado poderá responder, no qual será fundamental o diálogo com esses praticantes.
É totalmente inadequado imaginar que o Estado possa tomar decisões de salvaguarda que não partam do interesse dos praticantes; isso equivaleria a constrangê-los a executar algo a que eles não atribuem valor, ou atribuem valor negativo.

A ayahuasca contém DMT, substância psicoativa proscrita pelas convenções da ONU e controlada em vários países. Houve, assim, uma polêmica no Brasil que antecedeu a do registro do patrimônio, dizendo respeito ao próprio estatuto legal da ayahuasca, quer dizer, se sua utilização poderia ou não ser legal ou não, se ela é ou não uma droga perigosa etc. Hoje, o governo brasileiro não tem exatamente uma lei, mas acumula pareceres e resoluções, reconhecendo o direito ao uso ritual e religioso da ayahuasca. Você acha que o reconhecimento como patrimônio cultural poderia amenizar ou mesmo erradicar a perseguição e a marginalização dessa prática?

Arantes: Sim e não. Depende muito de como as coisas forem encaminhadas. Se o Estado reconhecer como sendo de interesse público a proteção de uma prática que inclui a utilização de uma substância proscrita, terá que criar condições jurídicas para que a prática possa se dar plenamente.
Esse é um primeiro enfoque. Agora, existe outra maneira de ver a questão, mais conservadora: o Estado se rege por determinadas normas, consubstanciadas na legislação vigente, tanto nacional quanto internacional, nos casos em que o país tenha ratificado esses instrumentos. Desse ponto de vista, práticas que firam tais normas não poderão, por princípio, ser reconhecidas como bens patrimoniais.

Sabe-se, por exemplo, que em certas regiões do mundo a mutilação do clitóris é corrente e aceita como forma de expressar, digamos assim, a identidade social. Mas uma proposta no sentido de torná-la um bem do patrimônio mundial certamente não seria aceita por uma instituição como a Unesco. Voltando ao caso da ayahuasca, se a legislação brasileira proíbe aspectos da prática ritual, ela não pode ser proclamada pelo mesmo Estado nacional como bem patrimonial.

Não é exatamente assim. Existe um parecer de 2004 onde se afirma explicitamente que o uso ritual e religioso da ayahuasca é um direito. Reconhece, inclusive, o direito da mulher grávida e da pessoa menor de idade consumirem ayahuasca nesse contexto. Somente a ayahuasca fora do contexto ritual é que seria condenável.

Arantes: Se há uma exceção legal a essa proibição, caberia ao órgão de salvaguarda proceder ao esclarecimento público a respeito.

A principal reação na mídia foi exatamente essa: “Ah, então agora vamos reconhecer a cocaína”. Ou então: “Se for pra reconhecer, vamos reconhecer a cachaça”. O problema desses status jurídico da ayahuasca é que, embora exista o reconhecimento legal para o uso religioso, existem também fronteiras tênues e cinzentas. Surgem assim situações paradoxais, como, por exemplo, no Canadá, que, após anos de uma batalha jurídica liderada por um grupo do Santo Daime reconheceu o direito de uso religioso da ayahuasca. Pois bem, o governo canadense pede para o governo brasileiro um documento do Itamaraty declarando oficialmente que a ayahuasca pode ser exportada e o governo brasileiro não dá... Outro exemplo é o de norte-americanos que quiseram vir para o Brasil para participar de rituais religiosos com ayahuasca e, ao declará-lo, tiveram vistos negados.

Arantes: Justamente, um plano de salvaguarda pressupõe mudanças nesse cenário. Na hipótese de o uso da ayahuasca ser reconhecido como bem do patrimônio cultural nacional, seria de esperar que o Ministério da Cultura, que regula o Iphan, atuasse junto às demais instâncias federais no sentido de garantir o livre uso dessa substância nos rituais.

Percebemos a preocupação, por parte de determinadas vertentes, com o que consideram usos equivocados e banalizados da ayahuasca, por exemplo o comércio e o turismo da ayahuasca, ou então a diversificação excessiva das práticas, a ponto de perderem qualquer contato com a prática original. A salvaguarda é entendida por eles no sentido de proteger suas práticas dessa vulgarização.

Arantes: Por isso é que eu digo que a primeira coisa que se deve fazer é conversar com os praticantes. Não é o Estado que deve definir os limites dessa salvaguarda. Os praticantes é que dirão: “Existem práticas que consideramos espúrias”. O Estado apenas media as negociações.

No Peru, o uso da ayahuasca está salvaguardado, porém associado exclusivamente a populações indígenas e ao uso terapêutico. Já no Brasil, ele é associado a religiões cristãs, caboclas e urbanas, e relatórios do governo condenam o uso terapêutico da ayahuasca. Uma prática pode ser reconhecida como patrimônio de um jeito aqui e de outro jeito no Peru?

Arantes: É que a mesma prática tem valores diferentes em contextos distintos. O reconhecimento da Unesco não implica absolutamente em padronização. O patrimônio cultural imaterial diz sempre respeito a populações concretas, em territórios específicos.

A tentativa de grupos ayahuasqueiros de se representarem como uma religião genuinamente brasileira tem chance de decolar?

Arantes: O que atrapalha é o “genuinamente”. Eu acho que ela pode ser reconhecida como uma das expressões da religiosidade no Brasil. É difícil falar em religiosidade brasileira, por estarmos nos referindo a populações tão diversas entre si, com suas respectivas experiências históricas e culturas.

Parece estar surgindo também uma tendência, no Acre, de se associar o uso da ayahuasca a certo orgulho de ser acreano, ou então com uma identidade amazônica...

Arantes: O valor regional é um dos valores que a ayahuasca assume. Localmente, no Acre, ela está sendo acionada para construir uma identidade. Pode ser que na Grande São Paulo não tenha esse valor: os valores atribuídos à prática são situacionais.

Quanto ao papel dos índios, como explicar que, ao mesmo tempo em que eles são bastante citados nos trâmites do pedido de reconhecimento, os grupos ayahuasqueiros guardem distância em relação às práticas indígenas?

Arantes: Não sei, talvez porque a própria história que se conta a respeito da ayahuasca a vincule simbolicamente a populações indígenas. Trata-se provavelmente de uma apropriação de práticas indígenas, uma construção de novos sentidos.
De qualquer modo, cabe a quem pilotar o processo de salvaguarda consultar os povos indígenas eventualmente envolvidos. Porque a delimitação resulta de uma decisão política. Até porque o que se fizer com relação à ayahuasca no país irá repercutir sobre o seu uso por diversos grupos, os que foram incluídos no processo de registro e os que não foram. Por isso eu repito que a inclusão de um grupo social no processo de registro é uma decisão política e intelectual muito séria.

Uma religião pode ser reconhecida como patrimônio cultural imaterial?

Arantes: Uma religião inteira não. Mas a prática divinatória do jogo de búzios, por exemplo, foi apresentada pela Nigéria, no programa de proclamação do patrimônio cultural imaterial da humanidade, como um conhecimento tradicional e foi proclamado como tal.

Quais são as chances que você vê de esse processo ir adiante e culminar no reconhecimento pelo Iphan?

Arantes: Acho que a instituição tem de tomar partido em relação às restrições legais e às interdições sociais existentes em relação ao consumo da ayahuasca. Enquanto não houver clareza quanto a esse aspecto, penso que o processo será lento e tortuoso. Menos polêmico seria reunir e conservar a documentação existente sobre essa prática no país. Mas isso atenderia o que buscam as comunidades ayahuasqueiras?

Como fica a questão do segredo religioso, diante do pedido de reconhecimento do uso da ayahuasca?

Arantes: Essa é outra questão importante, para a qual é preciso estar atento. Porque, sem dúvida, podem-se revelar aspectos que não sejam considerados próprios de serem tornados públicos –que sejam da “intimidade cultural” do grupo envolvido. A discussão envolve, portanto, pensar que aspectos destas práticas serão revelados. Alguns deles talvez devam permanecer acessíveis somente aos iniciados, aos que têm compromisso moral com a continuidade da prática. Mas a linha de corte deve ser definida pelos praticantes.

A União do Vegetal, que é uma das vertentes ayahuasqueiras, desde meados da década de 1980 tem registrado, no Instituto de Propriedade Industrial, nomes de elementos e de entidades de seu panteão, como Caupuri, Lupunamanta, Chacrona, Mariri, Hoasca, Tiauco e Rei Inca. No entanto, alguns dos termos são comuns a todo o universo do xamanismo ayahuasqueiro amazônico. Do ponto de vista jurídico, outros grupos religiosos estão impedidos de usar em seus rituais nomes de entidades registrados no cartório pela União do Vegetal?

Arantes: É permitido que usem esses termos nos rituais, mas, no contexto comercial, ficam provavelmente proibidos. Quando se registra uma marca, registra-se a denominação do produto no mercado. E não pode haver dois produtos no mercado com a mesma denominação.
Por outro lado, desconfio de que nomes próprios e denominações geográficas não possam ser utilizados como marcas nesse sentido. Seria preciso fazer uma consulta jurídica. O fato é que, quando se trata desse tipo de registro, quem tiver provas do uso público mais antigo do nome ou da substância terá precedência sobre os demais.

A discussão pode ir longe. Os hinos do Daime, a quem pertencem? Na medida em que os grupos ayahuasqueiros crescem, muitas pessoas começam a usar o repertório comum de hinos e alguns dos grupos se sentem invadidos.

Arantes: Com certeza. Existe um projeto patrocinado pela Organização Mundial de Propriedade Intelectual denominado Patrimônio Criativo –Creative Heritage Project–, do qual eu participo como consultor. Trata-se de um levantamento internacional em busca de parâmetros e referências para uso de museus e arquivos, governamentais e não-governamentais.
Eu sugiro uma consulta à página do projeto e ao site da OMPI, onde há vários documentos que vem sendo produzidos a esse respeito, bem como exemplos concretos de diferentes partes do mundo relacionadas às questões espinhosas que acabamos de discutir1.

Há algo mais que você considere relevante acrescentar, para fechar nossa conversa?

Arantes: Eu acho que o essencial dessa longa conversa é que as pessoas não se esqueçam de que o patrimônio cultural tangível e intangível é uma construção social que resulta da negociação entre a sociedade e o Estado, visando ao desenvolvimento de ações em relação às quais tanto o Estado, quanto a sociedade passam a ter responsabilidade.
Então, não se trata simplesmente de uma proclamação, em que se anuncia a importância de algo. É muito mais que isso, já que, quando o Estado ilumina uma prática e se compromete com sua salvaguarda, cria-se um fato novo no universo cultural, no horizonte do qual aquele bem ou aquela prática faz parte, produzindo consequências.
Nunca é demais chamar a atenção para a responsabilidade social dos órgãos que desenvolvem os programas e atividades de preservação do patrimônio e também dos grupos que são os detentores dessas práticas ou bens.

Publicado em 14/11/2009
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Bia Labate e Ilana Goldstein


Bia Labate
é antropóloga, autora de "Reinvenção do Uso da Ayahuasca em Centros Urbanos" (Mercado das Letras), entre outros livros. Seu principal foco de estudos são as substâncias psicoativas. Site: http://www.neip.info. Blog: http://bialabate.net.
Ilana Goldstein é mestre em ciências sociais pela USP e doutoranda em antropologia social na Unicamp. É autora de "O Brasil - Best Seller de Jorge Amado" (ed. Senac) e "Responsabilidade Social: Das Grandes Corporações ao Terceiro Setor" (Ática). Faz parte do comitê editorial da "Proa - Revista de Arte e Antropologia" (
www.ifch.unicamp.br/proa). 

Notas 

1 - A ayahuasca é uma bebida psicoativa utilizada por diversas populações indígenas da Amazônia e contém DMT, substância proscrita pela Convenção de Viena da ONU, de 1971, da qual o Brasil é signatário. Mesmo assim, o governo brasileiro reconhece o direito ao uso religioso da planta, pelo fato de ela ser utilizada como um sacramento nas religiões do Santo Daime (em suas vertentes do Alto Santo e do Cefluris), da Barquinha e da União do Vegetal (UDV). A bebida é utilizada também por grupos indígenas dentro e fora do território brasileiro.

2 - Nas palavras do antropólogo Gilberto Velho, “estamos lidando, ao examinarmos as políticas públicas de patrimônio, com complexas questões que envolvem emoções, afetos, interesses os mais variados, preferências, gostos e projetos heterogêneos e contraditórios. (...) A heterogeneidade da sociedade complexa moderno-contemporânea (...) aponta para as dificuldades e as limitações de uma ação pública responsável pela defesa e pela proteção de um patrimônio cuja escolha e definição implicam necessariamente arbítrio e, em algum nível, exercício do poder”. (Velho, Gilberto. “Patrimônio, Negociação e Conflito” In: "Mana", abr. 2006, vol.12, nº 1, págs. 244-246).

3 - Quanto a esse ponto, Antonio Arantes argumenta que produto e processo cultural são indissociáveis: “As coisas feitas testemunham o modo de fazer e o saber fazer. Elas abrigam também os sentimentos, lembranças e sentidos que se formam nas relações sociais envolvidas na produção e, assim, o trabalho realimenta a vida e as relações humanas”. Arantes, Antonio Augusto. “O patrimônio imaterial e a sustentabilidade de sua salvaguarda”. In: "Revista DaCultura", ano IV, nº 7. Disponível on-line no site da Funceb: http://www.funceb.org.br/pdf.html. Acesso em 05/01/2008.

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